Por Ygor Anario
19/07/2021
Resumo: Este texto é um relato do processo de criação da obra Mineração 1: Rio Potengi pelo artista natalense Ygor Anario. Tomando o Rio Potengi enquanto um rio sem acesso, cujas águas não desfrutam mais do prestígio histórico que outrora tiveram quando deram nome ao nosso estado, o artista, baseado no líder indígena Ailton Krenak fala de uma despersonalização de lugares como o rio, associando-a à forma como primeiramente o experienciamos por meio das plataformas digitais. Como essas tecnologias mudam nossa relação com o Rio Potengi? Que imagens permanecem conosco dos motores de busca e seus filtros invisíveis? Quais padrões de representação emergem dessas imagens? A foto ou o rio está em baixa resolução? O termo “mineração” provém da tecnologia da informação, mineração de dados, um processo de explorar grandes quantidades de dados em busca de padrões consistentes.
Palavras-chave: Arte contemporânea; mineração de dados; plataformas digitais; Rio Potengi.
Dividida em duas partes, a escrita a seguir diz respeito a uma obra minha, Mineração 1: Rio Potengi, a qual, entre os dias 18 e 22 de novembro de 2019, esteve em fase experimental na galeria do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A obra também integrou a exposição “Confluências”,[1] com curadoria de Estrela Santos, no Museu Câmara Cascudo, aberta à visitação do início de 2020 até o momento de suspensão do acesso devido a deflagração da pandemia do novo coronavírus.
A primeira parte, rabiscada no passado e transcrita a seguir, mescla o relato de um processo criativo à emojis e imagens, dentre as quais capturas de tela surgem próximas e enquanto minhas intenções, lado a lado às citações diretas e estilhaços de ideias. Ela é uma ignição pessoal empreendida e utilizada concomitantemente a criação da obra Mineração 1. Quase dois anos mais tarde, por sua vez, a segunda parte foi escrita na intenção de atualizar a primeira em pontos que não mais coincidem com aquilo que venho pensando.
Parte I
Esse texto tem seu objetivo compreendido nos significados dos verbos “orientar” e “arquivar”. Os processos evidenciados pelos conceitos descritos por estes verbos dizem respeito à produção artística a ser desenvolvida. Concebida dentro de uma iniciativa que tem inicialmente por nome “Projeto Margem”, a obra deve estar em conexão com o Rio Potengi. Para mais, serão realizadas ao desenrolar desta escrita esforços na contextualização em torno de alguns conceitos suscitados ao longo da mesma.
O Rio Grande
“Outrora Rio Grande, quando deu seu nome ao estado, o hoje Rio Potengi perdeu muito do prestígio histórico. De importância social, ambiental e paisagística, o volumoso rio parece ter caído no esquecimento para muitos potiguares” (RIBEIRO, 2017). Este prestígio histórico referido enquanto perdido, se funda no extrativismo colonial que se fez presente desde os primeiros dias da Capitania do Rio Grande.
Imagem 01 - Mineração 1: Rio Potengi.
Vídeo vertical, 5'33'', HD, colorido. Fonte: Ygor Anario, 2020.
Não obstante, para além dos laços que evocam o extrativismo predatório — os quais, ainda nos dias correntes são simbolizados pela carcinicultura que percorre as margens do rio em Áreas de Preservação Permanente (APP) —, sem sombra de dúvida, há de existir, na cidade de Natal (RN), pessoas que contenham em si laços afetivos com o rio, que não o despersonalizam. O líder indígena Ailton Krenak fala que “Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista” (KRENAK, 2019).
Ressalvas devem ser feitas referentes a ideia de “despersonalizar”. Ao retirar a partícula que exprime negação, ficamos unicamente com a palavra “personalizar”. No dicionário, esta palavra é definida enquanto atribuição de “aspecto, qualidade, características de uma pessoa a; tornar igual a uma pessoa; personificar”. Entretanto, chamo atenção para o fato de que não coloco o sentir enquanto atributo exclusivamente humano, do mesmo modo, não o coloco em um patamar superior pressuposto no uso da palavra personalizar. Mas, afirmo um sentir inerente a todas as entidades, de modo que a ideia de despersonalizar está perto de uma noção de desaproximação e desconsideração dos sentidos dessa entidade outra.
A princípio, não associamos estes modos de percepção aos grandes conglomerados da tecnologia, ou as Big Tech, “grandes empresas associadas a plataformas de uso intensivo de dados, quase todas situadas na América do Norte, e também cada vez mais na China” (MOROZOV, 2018). Esta despersonalização do Rio Potengi se baseia também na construção da imagem que se faz do mesmo por meio das plataformas.
Proposição
Isto posto, como proposição, idealizei um trabalho de “mineração” de imagens do Rio Potengi por intermédio da Internet. Tomei o termo “mineração” emprestado do campo das tecnologias da informação. Neste último, o mesmo aparece enquanto mineração de dados ou data mining. Esta tecnologia descreve um processo de exploração de grandes quantidades de dados à procura de padrões consistentes, “como regras de associação ou sequências temporais, para detectar relacionamentos sistemáticos entre variáveis, detectando assim novos subconjuntos de dados”.[2]
Nos dias atuais, comumente, a Internet é o ponto primeiro de experiência do sujeito no que se refere a muitos interesses. Tomemos de exemplo o uso do Google Maps aplicado ao conhecimento de outros lugares. Muitas vezes, antes de viajar, se faz o reconhecimento do lugar de destino por esta plataforma. Ao desembarcar no mesmo, a desenvoltura com que se orienta no lugar é outra, como se já o “conhecesse”.
Entretanto, a rede e as grandes corporações por trás das plataformas de buscas orientadas ao usuário edificam o imaginário coletivo por meio de algoritmos, mais precisamente por filtros invisíveis. Estes, pensando por/em nós, mostram-nos os melhores resultados com base no que supostamente poderíamos gostar. O ativista Eli Pariser nos fala que a ampla maioria das pessoas tomam esses mecanismos de buscas enquanto imparciais. “Mas essa percepção talvez se deva ao fato de que esses mecanismos são cada vez mais parciais, adequando-se à visão de mundo de cada um” (PARISER, 2012).
Funcionando há mais de dezoito anos, o mecanismo de busca a ser utilizado na hipotética mineração das imagens é o Google Imagens. O serviço deste mecanismo é fornecido pela empresa a qual lhe dá nome, a Google, e permite que os usuários pesquisem na World Wide Web — mais conhecida por WWW, A Web, ou Rede Mundial de Computadores — por conteúdo de imagem.
“Mãos à/na obra”
Estou na página inicial do Google Imagens.
Em sua barra de pesquisa escrevo os parâmetros “Rio Potengi” e dou “Enter”.
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Os resultados instantaneamente aparecem na tela.
Imagem 02 - Captura de tela dos resultados de busca por "Rio Potengi".
No Google Imagens. Fonte: Ygor Anario, 2020.
São apresentadas à mim as ferramentas de pesquisa referente a Tamanho, Cor, Direitos de Uso, Tipo e Tempo das imagens. Não utilizo nenhuma das ferramentas, pois, comumente, as pessoas não as usam e quero trabalhar com base naquelas imagens que são vistas por todos ao procurar pelo Rio Potengi.
Em um movimento de scrolling, eu continuo pela página, até o momento no qual o mecanismo do Google Imagens decida mostrar o botão “Mais Resultados”. Vê-se em torno de oitocentas imagens até isso. Se tomarmos um monitor de dezenove polegadas por referência — o qual estou usando no levantamento das imagens —, utilizando no navegador um zoom de página normal, isto é, de 100% e, podendo haver variações de acordo com a resolução do dispositivo, a tela irá enquadrar quinze imagens por vez, estas podendo ser em orientação retrato ou paisagem. Desse modo, seriam necessárias cerca de cinquenta e três telas para que todos os resultados fossem exibidos até o aparecimento daquele botão.
Nada obstante, com auxílio de uma extensão chamada “I’m Gentleman” para uso no navegador — este, não por coincidência, também do Google —, realizei com facilidade o download de todas as oitocentas imagens de uma única vez, com apenas um clique no botão da extensão. Em relação a esta última, ela salva as imagens no tamanho em que as mesmas são exibidas na página, incluindo até aquelas que não poderíamos salvar usando o botão direito do mouse.
Como não adicionei filtros referentes às ferramentas acima mencionadas, as imagens que foram baixadas possuem resolução, orientação e tamanho diferentes e, além disso, muitas delas se repetem. As imagens clonadas, frutos de apropriações na própria Internet, possuem igualmente entre si características diferentes e dizem muito sobre questões relativas a quem tem acesso a essas imagens pobres, imagens postadas inúmeras vezes, baixadas, compartilhadas, reformatadas e reeditadas.
A artista e teórica alemã Hito Steyerl comenta que:
A imagem pobre é um bastardo ilícito da quinta geração de uma imagem original. Sua genealogia é duvidosa. Seus nomes de arquivo estão deliberadamente mal soletrados. Ela desafia frequentemente o patrimônio, a cultura nacional ou mesmo os direitos autorais. Ela é transmitida como uma isca, um engodo, um índice, ou como um lembrete de seu antigo eu visual. Ela ridiculariza as promessas da tecnologia digital. Não só é muitas vezes degradada a ponto de ser apenas um desfoque apressado, como se duvida até mesmo que possa ser chamada de imagem (STEYERL, 2009).
A resolução dessas imagens pobres que remetem ao Rio Potengi reflete a maneira como o mesmo é experienciado pelos noviços. Além disso, devido à grande repetição de certos motivos, alguns se tornam mais relevantes que outros. Esta relevância acaba por criar e reforçar estereótipos, os quais alteram de modo significativo a maneira como percebemos as coisas.
Como implica na mineração de dados, as imagens foram divididas em quatro grandes categorias e, de modo conseguinte, em subcategorias: “1 Além do Humano”, onde apresento as subcategorias “De Per Se” (imagens do rio “por si só”), “Fauna” e "Resquícios de Urbe” (fotos onde há indícios da cidade, mas nas quais o ser humano não está em destaque e o rio consiste na figura principal); “2 Pontes”, são apresentadas imagens do rio com destaque para as duas principais pontes do estado a Ponte do Potengi Presidente Costa e Silva, mais conhecida como Ponte de Igapó, e a Ponte Newton Navarro, como também um agrupamento intitulado “Outro” para imagens de pontes não classificadas; a categoria “3 Barcos” e “4 Pessoas” não foram subdivididas.
Imagem 03 - Captura de tela mostrando as imagens da categoria "2 Pontes" baixadas no computador.
Fonte: Ygor Anario, 2020.
As imagens, suas categorias e subcategorias, sequenciadas como apresentei no parágrafo anterior, compuseram o vídeo. O formato escolhido para a sua produção foi vertical, ou retrato. Esta orientação da imagem remeteu aos principais meios que atualmente servem de interface para nós no contato com as imagens por intermédio da Internet. Esta orientação da imagem também dialoga com o que está se convencionando chamar de cinema vertical.
Uma das minhas referências para o trabalho foi um curta metragem de 2013, de Hito Steyerl, intitulado How Not to Be Seen: A Fucking Didactic Educational. MOV File. Neste vídeo de dezesseis minutos, a artista apresenta cinco lições de invisibilidade. Enquanto títulos dividem o vídeo em seções distintas, mas interrelacionadas, essas lições incluem como: 1 Tornar algo invisível para uma câmera; 2 Ser invisível à vista de todos; 3 Tornar-se invisível ao se tornar uma imagem; 4 Ser invisível ao desparecer; e 5 Tornar-se invisível mesclando-se a um mundo feito de imagens.
Imagem 04 - Mineração 1: Rio Potengi.
Vídeo vertical, 5'35'', HD, colorido. Fonte: Ygor Anario, 2020.
Outro
Ainda são bastante precárias as discussões sobre os impactos mais simbólicos da Internet na cultura em geral no nosso estado como um todo. As plataformas passam batidas como se fossem gratuitas. Além disso, no entendimento comum, elas não alteram de nenhuma maneira as nossas percepções em relação às coisas. Com o trabalho desenvolvido, cujo título é Mineração 1: Rio Potengi, quis trazer a luz justamente o imaginário potencial que é criado a partir do contato com o Rio Potengi por meio de uma das maiores plataformas existentes, a Google, mais precisamente por meio do mecanismo de busca do Google Imagens.
Por fim, “nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política, que não conseguimos nos erguer e respirar, ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas ecologias” (KRENAK, 2019). Transcrevendo um questionamento posto por Krenak, escrevo aqui, o que está sendo feito dos nossos rios, das nossas florestas, das nossas paisagens?
Parte II
De início, pudemos notar que o Rio Potengi é um rio sem acesso, cujas águas não desfrutam do prestígio histórico que outrora tiveram quando deram nome ao nosso estado. Pudemos também cruzar com a ideia de despersonalização do líder indígena Ailton Krenak, quando o mesmo fala que uma despersonalização de lugares como o rio se dá quando retiramos dele os seus sentidos. Fizemos uma associação entre aquela ideia e a forma como o Potengi é primeiramente experienciado por meio das plataformas digitais. Ainda, deparamo-nos com apontamentos que são evocados a partir das seguintes questões: Como essas tecnologias mudam nossa relação com o Rio Potengi? Que imagens permanecem conosco dos motores de busca e seus filtros invisíveis? Quais padrões de representação emergem dessas imagens? A foto ou o rio está em baixa resolução?
Doravante, passemos às atualizações e mais questões.
Quanto de detalhes é possível perceber em uma imagem em baixa resolução? Estaria implicado na baixa resolução um nível inferior de complexidade? E — aumentando a escala a partir do Rio Potengi — estariam os mundos de hoje em baixa resolução?
A esse último questionamento, a resposta definitivamente é negativa. Quanto ao termo “complexidade”, ele se apresenta aqui em referência aos sistemas complexos.
A política global multipolar, a instabilidade econômica e a mudança climática antropogênica correspondem a tais sistemas, os quais apresentam “dinâmicas não lineares, onde inputs marginalmente diferentes podem causar outputs dramaticamente divergentes”, bem como, “conjuntos intrincados de causas que se retroalimentam umas às outras de maneiras inesperadas, e que caracteristicamente operam em escalas de espaço e tempo que vão muito além da percepção não assistida de qualquer indivíduo” (SRNICEK, WILLIAMS, 2015). Progressivamente, eles suplantam as narrativas que usamos para estruturar e dar sentido às nossas vidas, segundo Srnicek e Williams (2015).
Imagem 05 - Mineração 1: Rio Potengi.
Vídeo vertical, 5'35'', HD, colorido. Fonte: Ygor Anario, 2020.
Além disso, o mal-estar que daí decorre é semelhante e recorrentemente transferido à tecnologia em geral. Ecoando a ideia na qual as narrativas estruturantes são suplantadas, o teórico americano da arquitetura e do design Benjamin Bratton fala que tais desmistificações não solicitadas são perturbadoras, uma vez que parecem demover nós humanos de um lugar de presumível privilégio. “Mesmo quando tais tecnologias reorganizam as economias pessoais e globais, sua implicação filosófica mais profunda diz respeito a como elas introduzem um trauma copernicano, perturbando nossa compreensão anterior do cosmos” (BRATTON, 2021). O significado desses traumas está estreitamente ligado a uma questão temporal, os quais muitas vezes levam gerações para reverberar.
Ao ir além da percepção do humano e ao desmistificar e suplantar tais narrativas, estaríamos então relegados a escanteio como um vídeo de extensão rmvb com legenda rigidamente codificada? Um 3GP de 320x240 pixels circulando por inúmeras conexões bluetooth? O cheiro de obsolescência provém das tecnologias, dessas questões ou da maneira como estão sendo respondidas? Mas, de antemão, como se poderia combater essa subjugação extensiva?
Uma das tendências iniciais, as quais estão contidas no que os teóricos Nick Srnicek e Alex Williams chamam de folk politics,[3] é reduzir a complexidade a uma escala humana, uma vez que não mais apreendemos como o mundo opera. Quanto a esse posicionamento, eles alegam que o mesmo “está saturado de apelos ao retorno à autenticidade, ao imediatismo, a um mundo ‘transparente’, ‘à escala humana’, ‘tangível’, ‘lento’, ‘harmonioso’, ‘simples’, e ‘cotidiano’” (SRNICEK, WILLIAMS, 2015). Também podemos adicionar à lista dos autores a ideia de “natural”, cujo conceito nêmesis é o “artificial”, o qual é apressadamente e perniciosamente vinculado à tecnologia.
O retorno a esses valores pode ser relacionado também a um fantasma que assombrou o começo do século XIX, durante a Revolução Industrial, cujo nome é Ned Ludd. Ele supostamente destruiu com um martelo uma máquina em que trabalhava, tornando-se assim um símbolo da aversão ao regime de trabalho nas máquinas de tecelagem. Ante uma turbulência econômica e desemprego generalizado, as máquinas foram sentenciadas por trabalhadores que ficaram conhecidos por quebradores de máquinas, como também por ludistas. O espírito do Ludismo emana em uma canção tradicional intitulada General Ludds Triumph, em português, O Triunfo do General Ludd:
Estes Engenhos da maldade foram condenados à morte
Por voto unânime do Setor;
E Ludd que pode desafiar todas as oposições
Foi feito o grande Executor.
E quando empregado no trabalho de destruição
Ele próprio não se limita a nenhum método,
Pelo fogo e pela água ele faz com que sejam destruídos
Pois os Elementos ajudam seus planos.
Se guardado por soldados ao longo da rodovia
Ou bem protegido em uma sala,
Ele as aterroriza tanto a noite quanto de dia,
E nada pode suavizar sua perdição.[4]
Ao longo do tempo, o termo “ludismo” foi atualizado, acabando por prevalecer como “um movimento de reação ao progresso técnico — a industrialização, a mecanização, a automação e a novas tecnologias em geral — embora tal entendimento seja objeto de revisão por parte dos historiadores”.[5]
Neste momento, alguém poderia se perguntar acerca da relação disso tudo que está sendo falado com a obra Mineração 1: Rio Potengi, sobre a maneira como essas coisas estão concatenadas. Em resposta, eu diria que o cheiro de obsolescência conta com uma fração das tecnologias, mas que, em sua maior parte, provém da maneira como (não) imaginamos, interpretamos e respondemos a elas. Assim, ao longo da escrita e do processo de produção da obra, um sentimento de opressão por parte das plataformas digitais — como na ocasião em que falo que a despersonalização do Rio Potengi se baseia também na construção da imagem que se faz do mesmo por meio delas — localiza-se no ludismo que, como a folk politics, pervasivamente percorre a esquerda contemporânea como um senso comum não-crítico e inconsciente.
De modo contrário, poderia se especular quais possibilidades novas e efetivamente voltadas a um comum que é coletivo poderiam ser projetadas e implantadas. Pois, como sugerem Srnicek e Williams, a tecnologia do nosso século possui potenciais utópicos que lhes são inerentes, os quais não podem permanecer ligados a uma imaginação capitalista paroquial, “eles devem ser liberados por uma alternativa ambiciosa da esquerda. O neoliberalismo fracassou, a social-democracia é impossível e somente uma visão alternativa pode trazer prosperidade e emancipação universal” (SRNICEK, WILLIAMS, 2015). Tudo isso implica no fato de que a inovação tecnológica não está excetuada dos objetivos pelos quais é necessário se organizar politicamente, como também não se encontra afastada de questões e demandas de governança.
Referências
BRATTON, Benjamin. Planetary Sapience. Noema Magazine, Los Angeles, 17 jun. 2021. Disponível em: https://www.noemamag.com/planetary-sapience/. Acesso em: 19 jun. 2021.
HAMMOND, J. L.; HAMMOND, Barbara. The Skilled Labourer, 1760-1832. Londres: Longmans, Green, and Co., 1919, pp. 259-260. Disponível em: https://archive.org/details/skilledlabourer00hammiala/page/86/mode/2up. Acesso em: 20 jun. 2021.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LUDISMO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ludismo&oldid=61370893. Acesso em: 20 jun. 2021.
MINERAÇÃO DE DADOS. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Minera%C3%A7%C3%A3o_de_dados&oldid=59278669. Acesso em: 11 jan. 2021.
MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. [e-Book]
PERSONALIZAR. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7 Graus, 2021. Disponível em: https://www.dicio.com.br/personalizar/. Acesso: 11 jan. 2021
RIBEIRO, Ramon. Entre manguezais e águas serenas do Rio Potengi. Tribuna do Norte, Natal, 11 jun. 2017. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/entre-manguezais-e-a-guas-serenas-do-rio-potengi/382874. Acesso: 11 jan. 2021.
SRNICEK, Nick & WILLIAMS, Alex. Inventing the Future: Postcapitalism and a World Without Work. Londres: Verso, 2015.
STEYERL, Hito. In Defense of the Poor Image. e-flux journal, v. 10, n. 11, 2009. Disponível em: https://www.e-flux.com/journal/10/61362/in-defense-of-the-poor-image/. Acesso: 11 jan. 2021.
Foto da capa: Mineração 1, Museu Cãmara Cascudo, Ygor Anario, 2020.
[1] Artistas participantes da exposição: Christina Bakker, Darliany Quirino, Geovana Grunauer, Guilherme Santos, Iara Machado, Laura Souza, Marcone Soares, Neto Ferreira, Lucas Rodrigues, Luan Sales, Rodrigo Carlos, Soraya Lima e Ygor Anario.
[2] MINERAÇÃO DE DADOS. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Minera%C3%A7%C3%A3o_de_dados&oldid=59278669. Acesso em: 11 jan. 2021.
[3] “Folk politics nomeia uma constelação de idéias e intuições dentro da esquerda contemporânea que informa as maneiras de senso comum de organizar, agir e pensar a política. É um conjunto de pressupostos estratégicos que ameaça debilitar a esquerda, tornando-a incapaz de se redimensionar, criar mudanças duradouras ou expandir-se além de interesses particulares”. SRNICEK, Nick & WILLIAMS, Alex. Op. cit.
[4] HAMMOND, J. L.; HAMMOND, Barbara. The Skilled Labourer, 1760-1832. Londres: Longmans, Green, and Co., 1919, pp. 259-260. Disponível em: https://archive.org/details/skilledlabourer00hammiala/page/86/mode/2up. Acesso em: 20 jun. 2021.
[5] LUDISMO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ludismo&oldid=61370893. Acesso em: 20 jun. 2021.