Por Pablo Vieira
19/07/2021
Resumo: o presente texto é um relato do processo de feitura da exposição Corpo Desabrigo realizada a partir da investigação nos espaços abandonados na cidade do Natal (RN). Unindo performance e fotografia, Corpo Desabrigo surgiu do desejo de criação imagética e simbólica ao repensar as edificações abandonadas na capital. Com acesso gratuito, teve estreia em setembro de 2019 no Margem Hub de Fotografia e configurou-se como uma exposição fotográfica e videográfica que trata de abandono, memória e pertencimento ao pensar composições entre a carne e o concreto.
Palavras-chave: Exposição; corpo; performance; fotografia; desabrigo.
Abram os caminhos
Abram os caminhos
Abram os caminhos
Abram-se os caminhos
[...]
Cantar e dançar pra saudar
O tempo que virá
Que foi, que está
Tocar pra marcar
O rito de passá
O rito de passá[1]
01/07
hoje foi o primeiro experimento prático de corpo desabrigo, projeto que desengavetei desde o final do ano passado. movido pelas imagens de casas abandonadas no interior em que fui gestado/criado. a ideia-semente surgiu numa conversa próxima ao mar há uns anos atrás e só agora a maré encheu e transbordou.
o desejo de falar do abandono no contexto urbano. abandono físico, simbólico, esferas diversas da mesma palavra. corpo NU. eu despido.
a cabeça de um monumento é roubada
os jornais fervilham
mas o monumento sequer se move
ou mostra comoção
seu entorno já é tão hostil
que sua cabeça é o de menos
já rolaram tantas
e braços e pernas e bocas
e pés e sexos e olhos
parece que não vai sobrar nada[2]
06/07
fiquei maravilhado com o amontado de coisas. tábuas. telhas. peças de ferro que não sei precisar se são para carros, aviões, bicicletas... havíamos encontrado uma cenografia pensada pelo tempo. queria fazer-me instalação de imediato.
dei uma volta tímida por dentro, não queria abusar. afinal, era nosso primeiro encontro. fui com calma. tudo beirava cuidado também, tudo coberto por uma poeira marrom fosca que criava uma textura, um relevo.
saímos de lá com promessa de volta.
corpo empoeirado. boca seca.
tudo pedia água.
13/07
excitação, medo, euforia, curiosidade. tudo ali. junto com formatos de portas, ferros oxidados, madeira velha, instalações expostas, uma sensação de profundidade nos corredores, algumas partes iluminadas, outras não. cena de filme. alguns compartimentos brancos beirando a loucura. e de uma poética que não sei explicar. tudo ali. montado. arquitetado para não funcionar.
até o caramujo secou
murchou de tanto esperar
pelo que não sabia
se trancou em sua casa-casulo
ligou o gás
e se deixou
asfixiar
AQUI.
a presença é algo essencial. aqui-agora. como na performance, esse estado de oferta de presença se torna fundamental. implica numa entrega, mesmo que momentânea. ambos os corpos em diálogo direto, se moldando, encontrando pontos de convergência, atrito. subimos as escadas. começamos do primeiro andar. sala ampla, janelas grandes, calçados nos pés, o resto do corpo despido. o trabalho se iniciou.
explorei muitas janelas, me recolhendo em algum canto do quadrado ou escondendo partes do corpo. o sol entrando nos dando energia e outras possibilidades.
uma agenda e uma pasta no canto da sala. será ainda da escola? esse tempo todo? não quis ler.
muitas cores num único lugar: chão vermelho, entradas brancas, portas azuis, paredes verdes. o lugar mais colorido que fotografamos.
haviam muitas árvores. uma delas com galhos secos que me apaixonei de cara. conversei com Patrícia Leal[3] na quinta sobre performance e ela mencionou de uma imagem de árvore que quer explorar, mas que é muito dolorosa tocar nessa imagem/partitura. hoje fui um pouco árvore, Patrícia. parece que suportei a dor do estático.
estava receoso de me jogar demais no chão. a presença de caramujos e de dejetos humanos me preocupou, me encontro um pouco cansado e com imunidade baixa. fiz tudo com mais cautela.
exploramos bastante a área externa, a quadra de esportes. muitas outras cores. parede rosa e amarela. descasquei a segunda. primeiro desejo de vídeo. a ação de degradação das mãos. ficou bonito.
numa outra sala, pedi para André[4] fazer outro vídeo. a dança pedindo espaço, oportunidade de interagir com o chão vermelho e areia. dancei. queria gerar imagens desfocadas para Francesca[5]. a continuação das homenagens que estou propondo fazer.
André acertou na escolha do preto e branco. ele leu meus pensamentos cheios de ideias de pertencimento. fiquei encantado com o que geramos.
essas últimas imagens contêm muita força para mim. depois de tanta cor vibrante, resta o cinza, um resquício dele, uma fuga captada num instante.
homenagem feita. terceira locação finalizada. o projeto caminha. obrigado, menines.
aqui contando as telhas quebradas do meu peito
subo e desço escadas a procuro de seus passos
mas é tudo fungo, pingo d'água,
fezes se decompondo no passo de mil caramujos
sedentos de casa
nem o casulo basta
nem o casulo comporta
nem o casulo conforta
esse prédio erguido para não findar
findo eu também
nas passagens estreitas
nas impossibilidades
de continuar existindo nos escombros
onde não te encontro
nada
absolutamente nada
só os resquícios do que sobrou
... é triste não sentir seu cheiro
virei árvore velha.
Imagem 01 - Corpo Desabrigo
Fonte: André Chacon, 2019.
corpo. simplesmente. e suas potências.
interação. entrega.
corpo humano. corpo concreto.
corpo da rua. corpo trânsito.
corpos possíveis. corpos a margem.
corpo-árvore. corpo-qualquer-coisa.
dispositivo corpo.
disrupção corpo.
corpo que não cabe nele mesmo.
corpo (in)contenção.
(in)certeza.
31/07
André me fez essa pergunta, assim meio do nada:
o que você está desabrigando nos ensaios?
fiquei bem pensativo. entre outras coisas, André mencionou que desabrigou seu pai. as demais coisas não recordo muito bem.
acho que numa primeira esfera eu desabriguei uma ideia, coloquei-a para fora do pensamento, em diálogo com a dureza da elaboração de um projeto. retirei-a de um lugar de descanso, calmo, e expus ao risco, a ação, ao ato de criação.
com a ideia agora em movimento, penso que desabriguei uma espécie de pudor que ainda tinha, expus ainda mais meu figurino-epiderme no ato do desnudamento. a nudez em relação ao chão, ao teto, a poeira, a tantas coisas que haviam nesses lugares. desengavetei esse medo bobo de me mostrar demasiadamente humano, simples e vulnerável. CRU. sujo. sem filtro. ou numa grande tentativa de me despir dele.
nessa relação me exponho de maneira quase brutal, animalesca. estou a mercê do tempo o tempo todo. estruturas corroídas e cambaleantes, ferrugem, pregos sob os pés e cacos e ossos e folhas e fezes e pedras e areia... pensa agora numa infinidade de materiais precários. eu encontrei um monte. eu estive com um bocado deles. ora dançando. ora tocando. ora olhando de soslaio. ora bem de longe. compondo e recompondo. exaurindo. me exaurindo também. investigando tudo que encontrava, cheirando... animal demarcando seu terreno.
me perdi do tempo também. não contava e nem fazia um parâmetro de quanto tempo permanecia em cada canto. observava meu corpo e o que queria contar/expor em cada ensaio/locação. o tempo ditou o ritmo de trabalho. hoje chove. amanhã faz sol. no outro dia estava nublado. é possível.
tempo esse que me traz à idade de 30 com o desejo de mover tudo isso: corpo, memória, afeto, cidade. palavras que norteiam minha pesquisa-vida-produção artística.
eu venho desabrigando muita coisa, né? e todas elas correm o risco de pegar chuva, ficar com a imunidade baixa, tossir por três semanas, se medicar e voltar a se expor de novo.
edit 1. isso não é pergunta que se faça pós-ensaio.
edit 2. não sei se respondo de maneira tão conclusiva.
edit 3. estou desabrigando palavras nesse momento.
edit 4. não chegarei a um fim.
É BOM SE PERCEBER PEQUENO DE VEZ EM QUANDO.
11/08
onde esse corpo do aqui-agora quer fazer depois?
que outros lugares deseja pertencer?
fora da casa, do hotel, da escola... o corpo corre risco de não ser preenchido?
e se sim... como trabalhar com isso???
Espaço e Lugar (Katia Canton, 2009)
A arte ensina justamente a desaprender os princípios das obviedades que são atribuídos aos objetos, às coisas. Ela parece esmiuçar o funcionamento dos processos da vida, desafiando-os, criando novas possibilidades. A arte pede um olhar curioso, livre de 'pré-conceitos', mas repleto de atenção (p. 12-13).
No emaranhado disperso da vida cotidiana, afinal, procuramos o eu através do outro, rastreamos nossas histórias e abrimos nossos diários íntimos na tentativa de nos oferecer verdadeiramente para o mundo. É dessa troca genuína de memórias e de sentidos que buscam os artistas contemporâneos (p. 35).
pó de casa
vento torto
teto caído
chão de folha
peito trêmulo
costas expostas ao mar
espinha dorsal gasta de maresia
olhos de sal
centro prestes a demolir
enquanto cavalos mansos
comem a vegetação
e me fazem pensar...
permanência.
DEDICATÓRIA
... para os restos de concreto
para o cimento infundado
para os pedaços soltos de madeira e a areia que escorre lenta por entre as frestas
para as escadas inabitadas
para a presença viva de corpos que encontram uma fuga e um lar
para as estátuas que viram tudo e hoje nada contam
para o permeável, o dissolvido, o carcomido
para o que não se sustenta com a palavra
para o que foi feito para não durar
para o tempo e seu trabalho que germina, cria e mata com a fúria da onda.
Imagem 02 - Corpo Desabrigo
Fonte: André Chacon, 2019.
05/09
o que há dentro do escombro?
o que resta nesse prédio desabando?
o que pode ser revelado debaixo da poeira úmida e dura?
o que é vestígio ou rastro nisso tudo?
pata, pé, rabo, mão, crina, bico, coluna...
o que é pertencimento? existe isso?
nesse corredor longo que me encontro,
existe afeto e memória?
o que é concretude, meu amor?
de umas leituras: Estética da ginga (Paola Berenstein Jacques, 2003).
O termo abrigo vem de abrigar (apricare), que significa resguardar dos rigores do tempo, proteger, pôr em lugar coberto; a ideia de abrigar equivale à de cobrir, de revestir de uma matéria para se proteger, de se esconder ou de se esquentar num interior.
Abrigar é criar um interior para nele entrar, é construir uma delimitação entre exterior e interior. Essa separação pode existir em diversos níveis, iniciando com o próprio corpo, ou seja, com o sujeito a ser abrigado: há primeiramente as vestimentas, depois as cobertas, o abrigo, a casa, o quarteirão, a cidade.
[...] a grande diferença entre abrigar e habitar vem do fato de que abrigar é da ordem do temporário e do provisório, enquanto habitar é da ordem do durável e do permanente. O abrigo é provisório mesmo que ele deva durar para a eternidade; a habitação, ao contrário é durável, mesmo que vá desmoronar amanhã. É essa relação com a temporalidade que faz a diferença. Por exemplo, habitamos nosso corpo em permanência, mas o abrigamos provisoriamente com uma vestimenta. É a diferença entre o ser e o estar. E, como a noção de "se tornar" faz parte do estado provisório, o abrigo pode vir a se tornar habitação (p. 26).
25/10
dos retornos queridos:
parabéns pelo trabalho
importante nesse tempo de
chão tão movediço.
siga dançando sobre os
escombros.
Foto da capa: André Chacon, 2019.
[1] Faixa Rito de Passá utilizada no processo criativo e que dá título ao primeiro álbum de estúdio da cantora e compositora paulistana, MC Tha (Rito de Passá, Ano: 2009, Selo: Elemess).
[2] Este texto faz menção uma matéria: Cabeça de monumento do antigo Hotel Reis Magos é roubada. Tribuna do Norte, Natal, 30, jun. 2019. Disponível em: . Consultado em: 18 jun. 2021.
[3] Artista, docente e pesquisadora. Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1996), mestrado em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e doutorado em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (2009). Atualmente, é docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Dança, Processos de Criação, Improvisação e Metodologias em Dança. É autora dos livros "Amargo Perfume: a dança pelos sentidos" e "Respiração e expressividade: práticas corporais fundamentadas em Graham e Laban", publicados pela editora Annablume / Fapesp.
[4] Fotógrafo de Corpo Desabrigo, concebeu e realizou o projeto comigo. André Chacon (28) é artista visual, nascido em Natal-RN e membro do coletivo Sociedade T. Iniciou seu contato profissional com as artes em 2015, na produção de fotografias e intervenções visuais nas artes cênicas. Sua pesquisa fotográfica gira em torno do estudo do corpo, imaginário e da percepção de um mundo que impele normativas violentas a quem vive na cidade, no mundo e na vida em sociedade.
[5] Fotógrafa norte-americana que homenageio em Corpo Desabrigo. Francesca Woodman (Denver, 1958) deixou para trás uma obra de grande força poética que fala por si mesma. Mais de 800 fotos impressas, nas quais aparece normalmente fantasiada ou nua, como uma figura semioculta, ou como uma presença fantasmagórica em silenciosos quartos abandonados onde a arquitetura e os objetos ao redor parecem ter uma presença física mais tangível que a sua própria. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/22/cultura/1453475483_302876.html>. Consultado em: 30 jan. 2021.
Atravessado demais pela publicação, de diversas formas, agora e depois. Grato pelo trabalho que veem desenvolvendo e pela possibilidade de mostrar parte dos meus escritos. Isso é movência!