#OCUPATUDO ou Onde se faz Crítica de Teatro (?)

Por Leandro Fazolla
02/03/2022

Resumo: O presente ensaio tem como intuito explicitar os passos dados para a criação do projeto Cadernos Cênicos, que veicula vídeos críticos através da plataforma YouTube, e sua relação direta como o Movimento Baixada Crítica, que tem como intuito preencher a ausência da crítica especializada na Baixada Fluminense, região periférica do estado do Rio de Janeiro. Tomando os dois projetos como objeto de estudo, o texto traça relações entre as noções de lugar no mundo físico e no mundo virtual e busca refletir sobre a necessidade de se ocupar espaços e as possibilidades de se produzir críticas teatrais de forma que estas acompanhem as mudanças da sociedade e das diferentes plataformas e recursos disponíveis virtualmente.

 

Palavras-Chave: crítica teatral; Rede Baixada em Cena; Cadernos Cênicos; lugar; virtual.

 

Como o título deste texto apresenta, o assunto é crítica teatral. E chegaremos a ele. Peço, no entanto, licença a quem me lê, para fazer uma viagem no espaço-tempo antes de chegar ao tema central. Porque, antes de mais nada, há de se falar de lugar. De onde se fala. De onde eu falo. Nesse caso específico, um “onde” que diz respeito a lugar fisicamente.

 

Meu quarto.

Rua da Separação.

São João de Meriti.

Baixada Fluminense.

Rio de Janeiro.

Brasil.

 

De acordo com a enciclopédia online Wikipédia, a Baixada Fluminense

 

é uma região geográfica do Estado do Rio de Janeiro, pertencente à Região Metropolitana do Rio de Janeiro, também conhecida como Grande Rio. [...] Na segunda metade do século XX [...] ficou consolidada sua imagem como uma região de grandes problemas sociais e de violência urbana, que perdura até hoje. Muitos desses problemas foram resultado dessa ausência do poder público, somada à ocupação irregular da região, que acabou ficando à mercê de chefes locais e da atuação de grupos paramilitares (esquadrões da morte, milícias). [...] Por estes problemas citados acima, seus moradores acabam enfrentando estigma quando procuram oportunidades de emprego em alguns bairros da capital estadual, uma vez que, apesar de seu parque industrial, configura-se como uma região-dormitório, o que faz com que seus moradores enfrentem horas nos engarrafamentos diários nas vias expressas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. (Wikipédia, 2022)

 

Localizada na Baixada Fluminense, a cidade de São João de Meriti possui, de acordo com dados do IBGE, uma população estimada em 473.385 habitantes distribuídos em uma área de 35,216 km². O elevado número de habitantes por quilômetro quadrado coloca a cidade no topo da lista não apenas de maiores densidades demográficas do Brasil, mas de toda a América Latina, o que lhe rendeu ao longo do tempo a alcunha de “Formigueiro das Américas”. Apesar dos números impressionantes, o município não possui nenhum teatro público, contando apenas com auditórios e espaços alternativos, comumente mais utilizados para eventos como palestras, formaturas e ações sem finalidade propriamente cultural. O único teatro existente no município pertence à rede SESC e fica localizado exatamente na rua que faz fronteira entre São João de Meriti e a capital do estado do Rio de Janeiro, a menos de dez minutos de caminhada da última estação do metrô. Poucos metros antes do SESC, vê-se uma placa onde se lê “Bem-vindo a São João de Meriti”. Ou seja, mesmo o único teatro da cidade está praticamente na capital do estado. Sem políticas públicas efetivas para o desenvolvimento cultural, torna-se compreensível que poucos grupos teatrais se formem neste cenário. Os que surgem, normalmente são oriundos de escolas, igrejas e cursos livres capitaneados por artistas e agentes culturais locais. Ainda assim, poucos conseguem driblar as adversidades para fazer um trabalho de longo prazo no município, sendo possível contar nos dedos os grupos meritienses que tenham projeção no cenário artístico como um todo. 

 

Mais de trinta e cinco quilômetros quadrados.

Quase meio milhão de habitantes. 

Nenhum teatro público.

 

Foi neste cenário (neste mesmo quarto de onde escrevo este texto, inclusive) que uma conversa por telefone faria surgir a Cia. Cerne, fundada por mim e Vinicius Baião no ano de 2013, tendo ao nosso lado, inicialmente, Stephany Lopez e Higor Nery, outros dois artistas da cidade vizinha, Duque de Caxias. Contrariando todas as possibilidades esperadas de uma cidade que não possui tradição em teatro, ao longo dos tempos, circulamos alguns estados do país, participamos de festivais e, principalmente, conhecemos mais profundamente as treze cidades que compõem a Baixada Fluminense e entendemos suas problemáticas, carências e necessidades, sobretudo no setor cultural. Foi o teatro que me levou a conhecer meu território, meu lugar.

Foi assim que descobri que a crítica teatral não pega o trem. Os críticos de teatro do Rio de Janeiro não atravessam os trinta minutos que separam a capital das cidades mais próximas da Baixada Fluminense. Sim, cidades como Duque de Caxias e São João de Meriti, segundo o Google Maps, estão a cerca de trinta minutos, de ônibus ou carro, da capital. Alguns dos fatores mais alegados para que determinados agentes – e aqui colocamos não apenas os críticos, mas também jurados de prêmios, curadores e outros do setor cultural – não assistam teatro para além do eixo Centro-Zona Sul da capital do estado são tempo, distância e custos. 

Trinta minutos.

Trilhar este caminho nos levaria a ter que questionar também assuntos pertinentes para o setor, como a falta de investimento financeiro no setor da crítica e outros, temas sobre os quais não me aprofundarei neste texto. Há que se perguntar, no entanto, com um setor cultural intenso como o da capital carioca, onde há sempre tantas opções de espetáculos teatrais, para que, e por quê, alguém iria “tão longe” para assistir teatro? Qual o interesse pelo que é feito nas bordas?

Em pesquisa onde analisam as relações de poder entre centro e periferia em uma comunidade dos Estados Unidos no final dos anos 1950, Norbert Elias e John Scotson explicam que

 

as palavras establishment e established são utilizadas, em inglês, para designar grupos e indivíduos que ocupam posições de prestígio e poder. Um establishment é um grupo que se autopercebe e que é reconhecido como uma "boa sociedade", mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência: os established fundam o seu poder no fato de serem um modelo moral para os outros. 

Na língua inglesa, o termo que completa a relação é outsiders, os não membros da "boa sociedade", os que estão fora dela. Trata-se de um conjunto heterogêneo e difuso de pessoas unidas por laços sociais menos intensos do que aqueles que unem os established. A identidade social destes últimos é a de um grupo. Eles possuem um substantivo abstrato que os define como um coletivo: são o establishment. Os outsiders, ao contrário, existem sempre no plural, não constituindo propriamente um grupo social. (NEILBURG in ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L, 2000, p.7).

 

Sempre gosto de utilizar tais termos para pensar o teatro da capital do Rio de Janeiro e aquele que é produzido nas periferias do estado, porque, de alguma forma, trata-se, aqui, também, de relações de poder, uma vez que o establishment tem o poder de definir o que está na mídia, nos grandes eventos, nas premiações... Poderíamos entender, ainda, que com a ausência dos críticos endossados pelo establishment do setor cultural, os grupos de teatro da Baixada Fluminense permanecem na condição de outsiders para a crítica teatral. 

Independentemente das razões ou motivações por trás dessas questões, sejam elas justificáveis ou não, o fato é que, na condição de outsider em que é colocado, o teatro da Baixada Fluminense permanece não sendo refletido, pensado ou analisado pela crítica especializada. Talvez isso aconteça somente quando há um movimento de migração, empreendido pelos próprios grupos que furam a bolha e chegam à capital, fenômeno cada vez mais comum recentemente ocorrido sobretudo por iniciativas dos próprios grupos, que cada vez mais se articulam e buscam estratégias conjuntas para isso, mas também incentivado por novos editais e políticas públicas de descentralização no estado, que determinam reservas de vagas para grupos de fora do centro. Ainda assim, raros – raríssimos! – foram os grupos que, mesmo em cartaz no centro, ao longo dos últimos anos conseguiram figurar em um veículo de crítica do establishment

Essa compreensão eu não tive sozinho, mas debatendo coletivamente, literalmente em rede. Junto à Rede Baixada em Cena, coletivo que reúne mais de quinze grupos de diferentes cidades da região, incluindo a Cia. Cerne, regularmente discutíamos a ausência de interesse sobre nossos trabalhos pelos críticos consolidados no circuito, mesmo quando realizávamos as, agora, anuais mostras coletivas na capital. Foi assim que, no ano de 2019, eu e mais alguns artistas da região criamos o Movimento Baixada Crítica – Escritas Afetivas. Em uma de nossas mostras, nos dividimos para acompanhar e escrever sobre todos os trabalhos apresentados pelos grupos da rede (os textos se encontram neste link). A partir de então, começávamos um movimento inédito na região de pensar localmente, de refletir conjuntamente nossos processos, trabalhos e obras. Movimento que nascia com o objetivo de perdurar, de seguir pelas próximas mostras, festivais e – por que não? – de se organizar com o tempo e passar a cobrir todos os espetáculos locais, instigando o debate e o amadurecimento do pensamento sobre o teatro na e da região. No texto enviado para a imprensa, o movimento dizia: 

 

A Rede Baixada em Cena lança o movimento "Baixada Critica", entendendo como desafio e missão criar espaços para abordagem teórica sobre o fazer teatral regional. “Baixada Crítica" não procura nenhum caminho similar com a crítica tradicional, ao contrário busca institucionalizar uma "critica afetiva" onde os valores estéticos não são mais significativos do que os valores éticos e morais da obra e de seus criadores. [...] Abordar e questionar são funções intrínsecas ao processo crítico, mas, para nós, ficam sem sentido senão forem contextualizadas dentro do universo de seus criadores, sobretudo levando em conta a relação dialética entre seus desejos, percalços e fragilidades. Não buscamos aqui uma ação paternalista entre amigos, mas a construção de intercâmbio de pensamento entre dois sujeitos: o crítico e o criador/obra. Ambos se encontram e se debruçam como investigadores de um "fazer" a ser constituído e não dado como objeto preconcebido. (Release enviado para imprensa).

 

Movidos empiricamente por uma ausência regional, ecoávamos o que Daniele Ávila Small havia sintetizado anos antes em seu livro O Crítico Ignorante (2015) como um possível caminho para a aventada “falência” da crítica de arte. Ao pensar em um crítico de teatro que se coloca numa postura de colaboração com os artistas, de pensar junto, Small defende que 

 

Esta seria uma possível reformulação de princípios: o lugar da crítica não precisa ser exclusivamente o lado de fora. Com isso, não afirmamos que os artistas devem se tornar críticos como os que escrevem nos jornais ou como os teóricos que escrevem nos periódicos especializados. [...]

Não se trata de propor o fim de uma crítica e o começo de outra, mas de apontar para a uma possibilidade de produção textual, crítica, interpretativa, sobre as obras de artes cênicas, como iniciativa de quem acredita que os discursos visíveis de teatro não estão dando conta do contexto de produção artística. Também não se trata de propor que os artistas digam se o trabalho de seu colega é bom ou ruim, mas de sugerir que eles se posicionem, que se expressem como artistas, como espectadores de obras que os intrigam. [...] Isso também é embaçar as fronteiras entre quem faz e quem fala. (SMALL, 2015, p.122).
 

Foi a partir deste movimento, pautado muito mais numa percebida necessidade coletiva do que em um interesse genuinamente pessoal, que me inseri recentemente na reflexão e escrita sobre espetáculos teatrais.

 

Corta para:

Setembro de 2020. 

Pandemia. 

Lockdown. 

Meu quarto.

 

Em meio à situação de vulnerabilidade dos artistas que há meses não conseguiam trabalhar devido às restrições impostas pela pandemia de COVID-19, a SECEC – Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro lançava o edital Cultura Presente nas Redes, praticamente um auxílio emergencial destinado a artistas e agentes culturais que, com inscrição simplificada e aberto à pessoas físicas, deveria ter como produto final a geração de obras no formato de vídeo, totalizando no mínimo trinta minutos e que poderiam ser divididas em capítulos ou similares. Na impossibilidade dos encontros coletivos, o edital se destinava a projetos que os agentes culturais pudessem realizar sozinhos, em suas próprias casas. Pesquisando a crítica teatral durante o período de lockdown através de debates e cursos virtuais, e aliado aos processos que vivi junto ao Movimento Baixada Crítica, inscrevi o projeto que intitulei de Cadernos Cênicos, um projeto aparentemente simples que consistia em gravar vídeos comentando cinco espetáculos teatrais de grupos da Baixada Fluminense. Os vídeos seriam postados em meu próprio canal de YouTube. Em resumo, eu apenas migrava um processo de reflexão sobre as montagens locais do campo da escrita para o campo do audiovisual, atendendo à obrigatoriedade de linguagem proposta pelo edital. 

Foi um típico caso em que a reflexão surgiu somente depois da prática. 

Com o projeto contemplado, comecei a pensar efetivamente em sua realização. Consumidor assíduo de canais de YouTube, sobretudo alguns de crítica cinematográfica e de cultura pop como Pipocando, Super 8, Omelete e outros, percebi que não seguia nenhum canal que se destinasse exclusivamente a debater, pensar criticamente ou até mesmo simplesmente indicar espetáculos teatrais. Pesquisando na rede, eram poucos os vídeos que eu encontrava com esse objetivo. Para a criação dos meus vídeos, comecei a me debruçar sobre as especificidades da plataforma, investigar o que me interessava nos vídeos que eu assistia: linguagem menos rebuscada; duração de até quinze minutos (normalmente eu fugia dos vídeos maiores que isso); e uma edição dinâmica, fossem por informações externas, como, no caso das críticas cinematográficas, a inserção de cenas dos trailers dos filmes analisados, fossem por recursos simples como aproximar e afastar a câmera do interlocutor a cada mudança de pensamento ou assunto no discurso. Inserções sonoras acompanhando ações, movimentos de câmera, entrada e saída de elementos no quadro, entre outros, também eram bem-vindas. Tudo isso contribuía para me manter mais atento ao que eu via do que quando, simplesmente, um palestrante ligava a câmera e debatia um tema. Ao longo do trabalho, também comecei a pensar cada vídeo como uma obra própria, com suas singularidades que normalmente acompanhavam às do espetáculo ou da abordagem que eu escolhia, como no caso da análise do espetáculo Cálculo Ilógico, em que tanto meu roteiro (sempre pensado previamente na construção de ideias-chave, mas aberto ao fluxo de pensamento espontâneo no momento de gravação) como todos os elementos que surgem em tela seguem como tema central elementos matemáticos, acompanhando a proposta da montagem.

 

Imagem 01 – Cadernos Cênicos

Frame de vídeo do YouTube. Créditos: Leandro Fazolla. 2021.

 

Investiguei bastante os canais que eu mais gostava de assistir, sempre a partir desta dinâmica mais de espectador e, mesmo hoje, após dois anos pandêmicos em que o online se tornou regra, poucos foram os canais de crítica que vi migrarem para esse formato pensando nas especificidades da plataforma. Sobre este fluxo, podemos pensar, por exemplo, na própria migração do teatro físico para o chamado teatro online. Com o tempo e o domínio que ganhamos sobre as tecnologias depois longo confinamento, entendemos que o teatro filmado com uma câmera parada não contribui para a experiência do espectador. Mesmo em detrimento de todas as discussões sobre se esses produtos são audiovisual ou teatro, entendemos que podemos (e devemos!) utilizar os recursos disponíveis, como câmera, zoom, inserções de cenas externas, projeções, ao vivo, filmado, para gerar experiências teatrais muito mais bem sucedidas do que a já ultrapassada filmagem unicamente com fins de registro a que recorríamos tempos atrás. 

Ainda assim, e apesar de tudo isso, quando pesquisamos “teatro” ou “crítica teatral” no YouTube (ou pelo menos quando EU pesquiso, recebendo apenas os resultados que são dados a MIM pelos interesses que os algoritmos acreditam que EU tenha, já que não podemos esquecer que nesse universo virtual tudo é bem relativo e uma mesma pesquisa empreendida por pessoas diferentes trazem resultados completamente distintos), o que encontramos primordialmente são palestras, entrevistas, registros de espetáculos e até mesmo obras já pensadas para esse novo modelo do audiovisual, mas poucos são os vídeos que se colocam na função de crítica, reflexão e/ou no formato que ao longo do tempo se convencionou chamar de “youtuber” (termo que, inclusive, já está tão impregnado em nossa cultura que consta em vários editais como uma das possibilidades de linguagem para a produção artística).

Na era de blogueiros, youtubers e influenciadores digitais, questiono-me sobre o que separa o teatro dos outros gêneros artísticos e faz com que este não tenha sido amplamente absorvido ou assimilado em tais plataformas. Afinal, muitos canais como os já citados se dispõem a discutir cinema, música, quadrinhos, cultura geek, cultura pop, animes, games e outros. Mas não teatro. Há ainda algo que faça com que o teatro pareça ser interessante apenas para um público erudito, “cult”, ou que considere tais plataformas e formatos como menores? Aqui, é interessante pensarmos que não estamos falando apenas do teatro dito contemporâneo, de linguagem talvez mais complexa e menos midiática. Falo do teatro como um todo. Os grandes musicais estão sendo pouco (ou nada!) debatidos por estes canais, o teatro mais midiático capitaneado por artistas com milhões de seguidores também. Após a pandemia, não podemos nem mesmo dizer que a resposta está no caráter presencial e, portanto, local, do teatro, que poderia fazer com que este só ficasse acessível a um número restrito de espectadores, gerando menos interesse de canais que se destinam a um público nacional, em que todos podem ter acesso a determinado produto simultaneamente, como é o caso de filmes no cinema ou séries no streaming. Com o lockdown, com espetáculos disponíveis online e até mesmo em serviços de streaming, após dois anos desde o início da pandemia do Brasil, que nos obrigou a mudar nossas formas de fazer e consumir, o teatro parece seguir ignorado pelos canais de entretenimento e crítica em formato de vídeo. São afirmações arriscadas as que trago, repletas de mais perguntas do que respostas e, como dito anteriormente, podem estar sendo percebidas apenas dentro da minha própria bolha de consumo de conteúdo (e eu adoraria estar equivocado).

Lugares devem ser ocupados. 

Nos últimos anos, cada vez mais acreditamos na lógica bem-sucedida de ocupar espaços, e entendemos como isso é, também e principalmente, nas mais variadas esferas, um ato político. Como artista oriundo da periferia, sempre fui adepto da lógica do #OcupaTudo. Sempre acreditei na necessidade de nossos trabalhos estarem sim, em nossa região, onde ele se faz necessário principalmente pela ausência do poder público oferecendo cultura e entretenimento à população, mas também na capital, em seus principais teatros e centros culturais, e sigo junto aos meus pares empreendendo esforços em ambas as direções.

Acontece que, a partir do isolamento forçado em que vivemos, comecei, tardiamente, a entender o espaço virtual como o espaço que sempre foi (não à toa a palavra site é, em tradução literal, “sítio” ou “lugar”). Este entendimento não é apenas meu. Muitos artistas de teatro, mesmo inicialmente questionando os limites do fazer teatral ao se verem obrigados a migrar para este ambiente virtual por questão de sobrevivência (fosse ela artística ou financeira) começaram a percebê-lo de forma diferente. O Teatro Caminho, do Rio de Janeiro, vem sendo considerado o primeiro grupo brasileiro a entrar em temporada online com um espetáculo (ainda que este marco seja delicado e difícil de mensurar). Em abril de 2020, quando a pandemia ainda era recente para nós e tudo soava estranho, a companhia estreou “O Filho do Presidente” na plataforma Zoom (aplicativo que, por sinal, eu e muitas outras pessoas desconhecíamos e baixamos exatamente com o intuito de ver a peça). Não coincidentemente, a pesquisa do grupo desde sempre se pautou pela investigação e ocupação de espaços possíveis ao fazer teatral. A publicação, em formato de livro físico, da dramaturgia escrita por Ricardo Cabral, traz esta apresentação sobre o coletivo:

 

O TEATRO CAMINHO é um grupo baseado no Rio de Janeiro. Nasce em 2014 e desde então investiga as relações entre cena, espaço e itinerância. Seu primeiro trabalho é Casa vazia, espetáculo de 24 horas de duração que acontece em casas da cidade.

Em 2017, estreia Eu vou aparecer bem no meio do seu sonho, site-specific que levava o público pelas ruínas de uma biblioteca abandonada. Em 2018, realizaram pelo Centro do Rio de Janeiro a série de ações aventuras estranhas, da qual nasce Amazona, thriller itinerante que começa num espaço fechado e explode pelas ruas da cidade. [...]

Em 2020, em meio ao isolamento social detonado pela pandemia da Covid-19, estreia seu quarto trabalho, o solo O filho do presidente. Primeira produção brasileira especialmente concebida para o live-streaming, a peça radicaliza ainda mais a pesquisa espacial do grupo [grifo meu]. (CABRAL, 2021, p.62).

 

Uma vez em que estamos na era do digital e o metaverso é uma “loucura” já real e presente, assim como na pandemia tivemos que entender os espaços virtuais cada vez mais como locais de estudo e trabalho, com suas salas de encontros, com a possibilidade de, em uma mesma sala, nos dividirmos em ambientes menores para ensaios ou reuniões de subgrupos, cada vez mais precisamos entender as diversas possibilidades do mundo virtual como entendemos os locais do mundo “real” (o mundo virtual seria menos real?). Enquanto classe artística, também nos cabe pensar nas possibilidades infinitas que estar nos lugares pode trazer. Percebemos isso com o teatro online e sua ampla capacidade de alcance. Patrick Pessoa ressalta a importância de, em vez de lamentarmos

 

a momentânea inacessibilidade do tipo de tecnologia (e do tipo de encontro) com que estávamos acostumados, é mais produtivo exercitarmos novas formas de ver e sentir que acompanhem a atual mutação tecnológica do teatro. Lembrando que, como ganho secundário dessa outra forma de difusão das peças, um público potencialmente muito mais amplo do que o habitual está tendo acesso a produções teatrais. (PESSOA, 2021, p. 207).

 

Após a pandemia e as mudanças tecnológicas que ela causou, dificilmente o setor teatral recuará no que tange ao virtual. No processo de retomada dos teatros no Rio de Janeiro se tornou comum que os espetáculos façam simultaneamente suas temporadas presenciais e online. E isso não tirou o público do teatro, as salas permanecem com a mesma ocupação de antes da pandemia. Faz-se cada vez mais importante olhar com menos desconfiança e medo para a gama de possibilidades que surgem do online e entender os locais do virtual também como locais passíveis de ocupação. #OcupaTudo!

Acredito que alguns exemplos recentes são bastante simbólicos neste sentido. No YouTube, o canal Tempero Drag, de Rita von Hunty, tem quase um milhão de inscritos interessados em acompanharem seus vídeos, cujos temas principais são política e filosofia. É revolucionário pensar que temos uma drag queen discutindo política e filosofia ocupando o mesmo local habitado por tantos youtubers para quem nos convencionamos a torcer o nariz. Em seus vídeos, Rita não apenas fala de temas espinhosos de maneira mais coloquial, como faz uso de uma edição irreverente, fala diretamente e brinca com seu espectador, se coloca em posição de rir de si mesma e da persona que criou. Prova que qualquer assunto pode ser abordado por uma linguagem que à priori parece comportar melhor temáticas tidas como superficiais pela maioria dos eruditos. Outro exemplo está na conta de Instagram do @newmemeseum, que vem se destacando nos últimos anos ao se apropriar e fazer humor a partir do universo da arte e da História da Arte. Suas postagens se utilizam da linguagem irreverente da internet para fazer rir, mas, ao mesmo tempo, refletir e criticar o circuito. Utilizando primordialmente a linguagem ácida que pode acompanhar os memes, tratam de temas complexos como nepotismo, curadoria, editais e muitos outros. Não à toa, já saíram do espaço virtual e ganharam uma exposição presencial em um espaço tão respeitado para o circuito como o SESC Pompeia. Segundo o release enviado à imprensa na ocasião da mostra, uma das principais motivações da criação do perfil foi o desejo de refletir, com humor e ironia, os mecanismos adotados para sobreviver no/ao mundo da arte e, também, sobre os mecanismos impostos pelo mundo da arte, muitas vezes opacos e incompreensíveis à primeira vista. Clarissa Diniz, pesquisadora em artes visuais convidada a escrever sobre o projeto, afirma que 

 

frequentemente os memes criados versam sobre experiências pessoais e, nesse sentido, talvez o perfil seja um exercício de autocrítica, pois é importante criticar os problemas e injustiças do contexto ao qual estamos inseridos, mas também é importante reconhecer e criticar os nossos gestos que contribuem para a manutenção desse contexto. (Dasartes, 2021).

 

Meme como forma de crítica. 

Há uma série de tabus a quebrar, como olhar para os memes com seriedade, apesar do humor. É necessário pararmos de ver este ambiente e as novas formas de comunicação como algo assustador, ainda que o número exorbitante de subcelebridades na era do espetáculo choquem às vezes (e choca mesmo saber que a simples divulgação de um participante de um programa como o reality show Big Brother Brasil o faça obter mais de dois milhões de seguidores em pouco mais de vinte e quatro horas). Mas percebo que cada vez mais a entrada de uma nova geração em setores como a crítica teatral vem dando um respiro e atualizando formatos. Temos exemplos interessantes de adaptações da crítica aos recursos oferecidos pela internet, como é o caso da Crítica Carrossel, realizada por Fernando Pivotto em seu @tudomenosumacritica no Instagram, que entendeu a lógica de imagens e textos curtos para esta plataforma e se apropriou completamente dela. 

 

Imagem 02 – Crítica Carrossel

Imagens divulgadas no instagram @tudomenosumacritica. Créditos: Tudo Menos Uma Crítica. 2021.

 

Numa era em que somos bombardeados por imagens o tempo todo, por conteúdo inesgotável em um feed infinito, numa época em que a FOMO (sigla para "fear of missing out", algo como "medo de ficar de fora" e que se caracteriza por uma necessidade constante de saber o que outras pessoas estão fazendo, associado a sentimentos de ansiedade) atinge tantas pessoas, em que nos habituamos a assistir filmes, séries e vídeos em velocidade acelerada para “dar conta de tudo”, como querer levar crítica para uma rede social esperando que alguém vá ler textos de dez mil caracteres? Como insistir em um formato de texto que precisa continuar nos comentários porque nem a própria rede permite discursos tão longos? Este exemplo é, ao meu ver, um grande exemplo de como, ao invés de tentar subverter os novos recursos para velhos formatos, devemos, sim, buscar entender os novos formatos para que sejam nossos aliados em uma nova construção. Daniele Ávila Small apontava para isso em 2015 (ou seja, antes mesmo da pandemia embaralhar ainda mais todas as regras do nosso jogo com o virtual), ao dizer que

 

O leitor/espectador, nesse contexto da Internet, pode começar a procurar outro tipo de texto crítico, pode buscar o discurso com o qual se identifica através destes dispositivos. A Internet traz uma nova lógica de produção e circulação de conteúdo textual que pode ser um caminho para uma nova abordagem do debate sobre as artes cênicas. [...]

O pouco espaço dedicado hoje à discussão crítica de teatro nos jornais não precisa mais ser um problema. Os artistas de teatro podem se perguntar “o que é a crítica?” e responder: são aqueles textos curtos publicados nos jornais que falam bem ou mal sobre uma peça. Mas eles também podem fazer a mesma pergunta pensando no que gostariam de encontrar como resposta. E, com as suas próprias respostas, trabalhar para construir outras possibilidades dentro dessa nova conjuntura de comunicação. (SMALL, 2015. p. 133).

 

É o que tenho tentado fazer há cerca de um ano (e insisto no “tentado”, porque este definitivamente é um jogo difícil de se jogar). Quando iniciei o projeto Cadernos Cênicos, a proposta era apenas criar um projeto para um edital. De lá para cá, entre retomadas e descontinuidades provocados por uma gama de fatores (como dar conta de produzir vídeos para espetáculos presenciais em que não há registros audiovisuais para criar uma edição interessante; dar continuidade a um projeto não remunerado que exige tanto trabalho; superar a autocrítica e a síndrome do impostor que fazem duvidar o tempo todo destes caminhos...), tenho refletido sobre os lugares possíveis para a crítica na contemporaneidade e no universo virtual e quais seriam – se é que há – as possíveis críticas de teatro que se mantenham atuais ao próprio tempo e respondam aos novos meios. Não quero, com isso, dizer que inventei a roda, pelo contrário, essa roda já está girando há décadas. Mas cada vez mais acho que ao invés de seguir dotando a crítica de teatro de uma espécie de aura que faz dela algo superior, devemos considerar cada vez mais a possibilidade de se fazer crítica de teatro em plataformas populares, algo já intrínseco a nossas próprias vivências. Recorremos comumente à Wikipédia (não à toa, e até mesmo como provocação, a primeira referência deste texto é à enciclopédia virtual tão rejeitada pelos acadêmicos e eruditos), assistimos a vídeos no YouTube, torcemos para participantes no Big Brother e “biscoitamos” nas redes sociais. Isso não muda o fato de que lemos Roland Barthes, assistimos a Zé Celso e Almodóvar, e também postamos fotos em preto e branco de uma quina de mesa atravessada por um feixe de luz. Na era da fragmentação, do multitarefa, não precisamos escolher entre sermos populares ou eruditos, entre consumir crítica pelo jornal impresso ou pelo Twitter (refletir espetáculos em 140 caracteres deve ser um belo exercício). A crítica não será menos profunda se for em textos curtos ou imagens no Instagram. Da mesma forma, não será menos profunda se for falada no YouTube em tom de quem conversa com amigos numa mesa de bar pós espetáculo. Há lugar para tudo. E se há lugar, ele deve ser ocupado!

 

E se você chegou até aqui, já sabe: curte, segue, ativa o sininho e... não, péra...

 

Acesse o Canal no Youtube de Leandro Fazolla neste link.

 

REFERÊNCIAS

CABRAL, Ricardo. O Filho do Presidente. Niterói (RJ): Cândido, 2021.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, Jhon L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000

PESSOA, Patrick. Dramaturgias da Crítica. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

SMALL, Daniele Ávila. O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

Baixada Fluminense. Site Wikipedia, 2022. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Baixada_Fluminense>. Acesso em: 13 de janeiro de 2020.

Movimento Baixada Crítica. Disponível em https://redebaixadaemcena.medium.com/. Acesso em: 13 de janeiro de 2020.

São João de Meriti. Site IBGE, 2022. Disponível em https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rj/sao-joao-de-meriti.html/. Acesso em: 13 de janeiro de 2020.

New Memeseum | Sesc Pompeia. Site Dasartes, 2022. Disponível em: https://dasartes.com.br/agenda/new-memeseum-sesc-pompeia/. Acesso em: 13 de janeiro de 2020.

 

 

 

 

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09/03/2022 - Leandro Santanna

Obrigado Fazolla! Teu texto é uma aula, um alento. Para os que lutam a mesma luta tanto, tempo, ver as subjetividades de todas as nossas angústias em cada frase e também nas entrelinhas é muito gratificante, pois ao mesmo tempo que existe uma sensação de que não estamos sendo ouvidos, ela é arrefecida com a percepção de que tem gente passando por tudo junto, e escrevendo bem sobre isso.