Por Anna Kühl, Gabriela Schembeck e Laura Françozo
02/03/2022
Resumo: O presente artigo aborda um podcast sobre figurino e caracterização, o Pano pra Manga, roteirizado e apresentado pelas autoras deste texto. O podcast em questão, conteúdo digital em áudio, versa sobre as áreas de atuação das autoras, o figurino e a caracterização, nas linguagens de artes cênicas e do audiovisual. O texto do presente artigo discorre sobre essa trajetória de criação, a relevância artística do tema escolhido, público ouvinte e contextualização acerca do formato digital em que é disponibilizado.
Palavras-chave: Podcast; figurino; caracterização; história oral; memória.
É cada vez mais provável que a história da moda não tenha mais como deixar em segundo plano os trabalhos das pessoas ligadas à moda, e isso não inclui apenas acadêmicos que se dedicam à moda: são técnicos, como iluminadores, estilistas, divulgadores, enfim, toda a equipe que compõe o fazer da moda. O trabalho das equipes técnicas deve emergir em abundância (VIANA, 2017, p. 232).
Você lembra do sucesso da pulseira da Jade na novela “O Clone”, e de todo o impacto gerado no consumo de roupas e acessórios por conta de ficções? E as camisas de Agostinho Carrara em A Grande Família? Ou ainda, toda a caracterização monstruosa em filmes de vampiros, principalmente da novela Vamp, no Brasil?
Por mais que estejamos falando de roupas, acessórios, maquiagem e mais, em todos os exemplos icônicos acima, nem sempre nos lembramos dos figurinistas e caracterizadores que estão por trás da cena. Esta é a razão pela qual o podcast Pano Pra Manga foi criado. A figurinista Laura Françozo uniu-se à colega de figurino Anna Kühl e à caracterizadora de cinema Gabi Schembeck, para que, juntas, se tornassem roteiristas e apresentadoras desse podcast lançado em maio de 2020.
De acordo com Cebici e Tekal (2006), um podcast é um arquivo de conteúdo em áudio que é hospedado em plataformas de distribuição automática de notícias ou conteúdo online e transmitido em aparelhos digitais. É quase um programa de rádio, que é publicado periodicamente nas plataformas de streaming e pode abordar diversos tipos de conteúdo: jornalístico, literário, acadêmico, narrativo, histórico, atualidades, cultura pop, etc. A diferença entre um programa de rádio comum e um podcast é que, no segundo caso, o ouvinte pode acessar o conteúdo quando desejar, além de poder interagir de modo assíncrono pelas redes sociais do programa.
O foco dos roteiros do podcast Pano Pra Manga é figurino e caracterização, que quer dizer tudo aquilo que compõe a segunda pele do ator: indumentária, cabelo, maquiagem – as camadas mais externas dessa visualidade, elementos plásticos e visuais da cena. Até meados do século XX, cada ator tinha seu acervo de indumentária e fazia sua própria maquiagem, ou seja, a profissão de figurinista e de caracterizador, a sistematização da área e dos materiais são bem recentes.
A escolha de criar um podcast sobre figurino e caracterização passa pelo entendimento – por parte das criadoras – de que é importante que os profissionais do nosso meio possam ouvir e serem ouvidos, que os mais diversos dilemas e assuntos possam vir à tona, promovendo reflexão e transformações no meio e nos ouvintes. A natureza do trabalho de equipe de figurino e caracterização é frequentemente invisível para o público, mas isso não deve significar que ela deva ser invisível para trabalhadores e conhecedores de obras culturais, uma questão fundamental para as autoras do conteúdo em áudio. Essa percepção e desejo de ação está em consonância com o que diz Medeiros (2005), quando aponta que enquanto os meios de comunicação em massa centralizam o poder de emitir conteúdos, as novas tecnologias, como os podcasts, permitem uma abertura para que todos possam emitir e consumir conteúdos.
Ao elaborar roteiros e entrevistas com os profissionais que trabalham na área, pode se notar o quão pouco material existe registrado sobre a interação entre diferentes campos da produção artística, como por exemplo, entre Figurino e Maquiagem. Ainda que se divida espaço tão íntimo como o camarim, existem diversas especificidades profissionais. Ao olhar além de uma área de atuação específica, podem ser reconhecidos departamentos diversos; inúmeras linguagens em que atividades de figurino e caracterização, por exemplo, são necessárias: artes cênicas (dança, teatro, ópera) e audiovisual (televisão, cinema, entre diversos outros formatos novos e antigos). Outro aspecto em que podemos notar inúmeras divergências são os vários formatos de produção, com origens infinitas, como criações dos artistas e companhias, com recursos próprios; produções com recursos públicos oriundos de editais de fomento ou leis de incentivo; ou ainda produções comerciais, com recursos privados. Nas práticas profissionais e pedagógicas das autoras, também se notou que interessados, alunos e colegas procuram por mais informações e compartilhamento de experiências sobre a indumentária em cena. Seja nas artes cênicas ou no audiovisual, desde a grande indústria até produções independentes de baixo orçamento, sempre existe algo para se aprender. Dessas duas demandas (profissionais e pedagógicas) surge a vontade de compartilhar experiências, leituras e fontes, de uma maneira acessível a qualquer interessado, seja um profissional ou não. Mais uma vez citando Cebeci e Tekdal:
Talvez uma das características pedagógicas mais importantes do podcast é a possibilidade de se aprender ouvindo. Para muitas pessoas, ouvir é mais instigante do que ler. Sabe-se que há centenas de anos os seres humanos usam a oralidade como ferramenta de ensino. (CEBECI, TEKDAL, 2006, tradução nossa).
Sobre o conteúdo dos episódios
Cada episódio do podcast tem um tema específico que traz questões técnicas do ofício de figurino e caracterização, sob a forma de reflexões, experiências pessoais, relatos de processos de criação, inquietações sobre temas atuais como representatividade, padrões de beleza, entre outros. Ao final de cada episódio são feitas sugestões de livros, séries, filmes, que o ouvinte pode buscar, caso queira saber mais sobre o assunto discutido. A repercussão dos temas dos episódios aponta quais assuntos podem ser disparadores de reflexões para o público ouvinte.
Eventualmente são publicados conteúdos com convidados, uma vez que a riqueza desse campo de atuação e saberes está justamente na sua heterogeneidade; assim o podcast pode servir como um espaço onde se alimenta o diálogo. Como exemplo, um dos primeiros convidados foi o professor do departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Prof. Dr. Fausto Viana, um dos pesquisadores mais importantes na área de trajes de cena no país, além de autor de muitos livros sobre o assunto. Também foram elencados como convidados, pessoas como Maria Celina Gil (doutoranda pela ECA USP), Alice Alves (figurinista e orientadora de cursos de figurino para o audiovisual), Salomé Abdala/Maldita Hammer (figurinista e drag queen), Marco Pacheco (figurinista de musicais e cosplayer). Nessa lista de convidados inclui-se não só participantes com alguma atuação acadêmica, mas profissionais reconhecidos e com vasta experiência de trabalho, como a figurinista, cenógrafa e aderecista Marcela Donato, Olintho Malaquias (figurinista e representante do Banco de Tecido, empreendimento em que são reposicionados a venda cortes de tecido que seriam descartados) e Simone Batata (caracterizadora de cinema, publicidade e ópera).
O intuito ao trazer estes convidados com diferentes formações é construir um panorama onde podem ser vistas diferentes formas que existem de se tornar um profissional, valorizar diferentes modos de construir conhecimento, seja no ensino formal ou fora dele, seja teórico, seja prático. Para tanto, também se faz importante dialogar com outras áreas próximas, como no episódio com as convidadas Valéria Lovato (iluminação), Carolina Bassi de Moura (direção de arte), Paula Gascon (modelagem), ou ainda com Melody Erlea do blog Repete Roupa, especialista em comunicação, cultura e moda que cria conteúdo digital sobre o vestir e foi convidada para o episódio sobre personagens de desenho animado - um exemplo de um episódio quando a pessoa convidada não atua exatamente na área de figurino, mas fala de maneira interessante sobre ele.
O podcast conta com episódios sem convidados, unicamente com a presença das autoras, que se voltam a temas diversos dentro das experiências profissionais e trajetórias, como os episódios sobre burocracias, produção, formação, ou ainda sobre datas comemorativas, como Natal, Réveillon e Carnaval. Ainda que não sejam o foco temático do podcast, por vezes emergem temas em voga como algum filme em cartaz, séries de sucesso ou peças de teatro que acabam fazendo parte dos roteiros.
Sobre quem ouve o podcast
De acordo com Murta (2016), o podcast faz parte de um fenômeno da internet chamado de “Era das Conversas” ou “Cultura Ligada em rede” onde a comunicação é horizontal, ou seja, se aproxima mais de uma troca, de uma conversa do que de uma forma de comunicação em que uma autoridade fala para todos. Murta ainda diz:
A internet, desse modo, por sua própria natureza, induz ao fim das hierarquias, a desintermediação, a descentralização e ao desaparecimento das legitimidades elitistas. Esse cenário reconfigura a paisagem midiática a partir de novos ambientes de conversação, como o podcast. (MURTA, 2016, p. 2).
A partir desse olhar do público como participante ativo de um diálogo, a primeira característica relevante do público é que ele é composto, em sua maioria, por pessoas que atuam em artes, interessados em geral, ou ainda, profissionais e estudantes da área de moda. Vale ressaltar que os cursos de graduação em moda geralmente têm somente uma disciplina sobre figurino e caracterização (quando esta faz parte das grades). Se não há nas grades curriculares de moda um espaço relevante sobre figurino, há um claro interesse dos alunos pelo assunto. Em 2021, as autoras proferiram uma palestra (sobre figurino e caracterização, motivado pelo podcast) durante a Semana de Têxtil e organizada pelos alunos de graduação do curso de Têxtil e Moda da USP | EACH. Nessa fala, foi possível discorrer sobre as linguagens possíveis dentro do figurino, e como tais processos diferem e se aproximam da área do design de moda. Este foi um claro exemplo de como a existência do podcast transcende o virtual e é capaz de se fazer presente dentro de um evento de uma instituição de ensino superior e como de fato a interação com o público ouvinte acontece.
Ainda sobre os ouvintes-interlocutores: o público do podcast é majoritariamente feminino, cerca de 80% e na faixa dos 28 a 34 anos (40%). Em pouco mais de 1 ano e meio desde sua estreia, foram lançados 31 episódios que foram ouvidos 3179 vezes, numa média de 102 plays por episódio. O público é, em sua maioria, residente no Brasil (82%), mas também temos ouvintes nos EUA (14%) e em menor escala em países como Peru, Colômbia, Argentina, Portugal, Alemanha, França, entre outros.
Imagem 01 e 02 - Gráficos de gênero e idade do público do podcast compilados pelo Spotify
Esses dados corroboram a observação empírica de que a área, como um todo, tem maior participação feminina. Sabe-se que, historicamente, funções de costura e embelezamentos em geral eram funções destinadas ou atribuídas às mulheres e – lembrando que estamos dentro de um sistema patriarcal que desprivilegia tudo que não é considerado masculino – isso se reflete no reconhecimento da área e de seus profissionais que normalmente são vistos como tendo “funções menores” e menos importantes dentro do complexo de uma produção artística1. Essa reflexão frequentemente perpassa as conversas de muitos episódios e possivelmente é uma das causas de não existir até recentemente tanta produção de conteúdo fora da academia sobre essas profissões como o Pano pra Manga Podcast se propõe a fazer.
Podcasts como fonte de história oral
No artigo intitulado “História oral e as artes: percursos, possibilidades e desafios” o autor, Ricardo Santhiago, começa seu texto afirmando que “o mundo das artes não está entre os assuntos recorrentes da história oral feita no Brasil” (2013, p. 155). Ao longo do artigo o autor mostra como esta ferramenta é pouco usada nas pesquisas sobre artes, mas mostra também seu potencial:
O estudo das artes terá a ganhar se levarmos até ele as perspectivas da história oral a respeito da natureza e do funcionamento da memória, de seu caráter seletivo, de sua relação com o esquecimento; sua reflexão a respeito do caráter intersubjetivo e relacional, provisório e circunstancial, das entrevistas. (SANTHIAGO, 2013, p. 166).
Sobre as pesquisas acadêmicas relacionadas à indumentária, vemos a partir dos anos de 1980 um aumento dos estudos e da participação das mulheres neles (VIANA, 2017). Mais recentemente, vimos o aumento de estudos acadêmicos específicos sobre traje de cena. Por mais que tenham aumentado o número de pesquisas tanto sobre indumentária, quanto sobre traje de cena, é fora das universidades onde se pode ver um aumento expressivo do uso de entrevistas que registram a memória de artistas e figurinistas sobre seu ofício.
No exterior há a criação de diversos podcasts em língua inglesa sobre indumentária e traje de cena a partir de 2018. Como exemplo temos podcasts como “Dressed” (início em 2018), “Articles of interest” (início em 2018), “Dress fancy” (início em 2018); “Designing Hollywood” (início em 2020) e “The art of costume Blogcast” (início em 2021). Enquanto alguns desses podcasts - como “Dressed” - tem como foco principal o debate e a divulgação de temas da história da indumentária, outros - como “Designing Hollywood” - focam em entrevistar figurinistas das maiores produções cinematográficas americanas.
No caso de "Designing Hollywood” podemos pensar que ele serve como registro da história oral de profissionais dos bastidores, que não estão em cena e que raras vezes dão entrevistas. Se historicamente vemos pouco material em primeira pessoa dos profissionais desse campo, suas memórias e processos de criação, as redes sociais e principalmente os podcasts têm sido espaços onde essa lacuna pode ser mitigada.
Fora da universidade, a voz daqueles que criam figurinos e caracterização também é pouco ouvida apesar do tema ser recorrente na mídia. Um exemplo do fascínio que a grande mídia tem por trajes de cena, mas ao mesmo tempo a falta de espaço que se dá aos profissionais, é uma notícia recente publicada (12/01/2022) na coluna Splash do portal UOL que aponta a reutilização de um figurino em novelas da Rede Globo. No título lê-se “Globo usa vestido pela 3ª vez em 5 anos para gravar novelas diferentes”. O artigo relata e mostra imagens de um mesmo vestido estampado em três atrizes de três novelas diferentes. E só. Não entrevista os figurinistas das ditas novelas, nem o departamento de figurinos da Globo (que tem um acervo muito grande e bem organizado à disposição).
A importância potencial de ter o relato oral de figurinistas, caracterizadores e equipes se dá segundo Santhiago pois:
Um segundo caminho passível de ser trilhado através da história oral seria a criatividade, ou, de modo menos abrangente, os processos de criação de artistas ou mesmo de outros criadores, como os intelectuais. Esse potencial não tem sido suficientemente explorado, seja na documentação do processo de criação artística, seja na produção de fontes narrativas sobre o processo (SANTHIAGO, 2013, p. 168).
É nessa lacuna entre o que a grande mídia fala sobre figurino e o fascínio que o público tem pela área, as lacunas da memória do campo e a demanda por mais informações e reflexões por parte do público é que os podcasts temáticos, como o Pano pra Manga, se inserem, gerando conteúdos a partir do ponto de vista das pessoas que executam o trabalho. Se pode notar, também, um grande potencial pedagógico de interesse de futuros profissionais desse campo, que podem ouvir trajetórias e experiências de profissionais através do universo do podcast.
Acesse o podcast Pano pra Manga no Deezer ou Spotify, e acompanhe as redes sociais do projeto neste link.
NOTA DE RODAPÉ
1Isso se reflete desde a ordem hierárquica em que os nomes dos artistas de criação aparecem na divulgação (repare, o nome de quem faz a cenografia quase sempre aparece primeiro), seja nos cachês pagos para funções ditas masculinas e femininas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
VIANA, F. Para documentar a história da moda. São Paulo: ECA / USP, 2017.
CEBECI, Z. & TEKDAL, M. (2006). Using Podcasts as Audio Learning Objects. Interdisciplinary Journal of E-Learning and Learning Objects, 2(1), 47-57. Informing Science Institute. Retrieved January 9, 2022 from https://www.learntechlib.org/p/44813/.
MEDEIROS, Macello Santos de. Podcasting: Produção Descentralizada de Conteúdo Sonoro. Anais do XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 5 a 9 de setembro de 2005.
MURTA, C. Podcast: conversação em rede. Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016.
SANTHIAGO, R. História oral e as artes: percursos, possibilidades e desafios. História Oral 16.1 (2013): 155-187.