REPENSANDO A TRADIÇÃO: PERFORMANCE ENQUANTO ESCRITA DA MEMÓRIA NAS CULTURAS POPULARES

Por Felipe da Silva Nunes
12/07/2022

Resumo:

Este artigo pretende refletir sobre a noção de tradição historicamente mobilizada nas ciências sociais, refletindo as sequelas oriundas dos traumas coloniais e quais suas implicações quando relacionadas com as práticas brincantes das culturas populares dentro da configuração do mundo contemporâneo. Outrossim, investigo a performance enquanto ferramenta imprescindível de escrita e rescrita da memória e organização de marcadores identitários de um grupo ou coletivo, a partir da ideia do brincar (play) na prática cultural como componente fundamental na construção de metanarrativas declarativas.

 

Palavras-chaves: Cultura Popular; Tradição, Performance, Identidade, Brincadeira

 

 

 

“Mas a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível reinventada”.

(Cecília Meireles)

 

O sol tratava de secar as últimas poças de água que resistiam nos espaços entre as pedras calçadas na rua. O movimento dos banhistas, indo e vindo, enfeitava a paisagem daquele domingo ensolarado na vila de Ponta Negra. Debaixo de um centenário pé de gameleira, mais de quarenta pessoas dançavam, suavam, cantavam cantigas de coco de roda na edição de aniversário de oito anos do Coco no Pé, tradicional encontro de coqueiros e amantes do coco de roda em Natal. Pouco a pouco, a roda tomava forma, sem qualquer necessidade de condução, naturalmente o tambor organizava o círculo, de tempos em tempos, uma dupla ocupava o centro para dançar, mãos e pés flutuando, olhos nos olhos como se estivessem de mãos dadas, apenas o olhar sincronizava a parceria.

 

Numa roda formada de aproximadamente vinte participantes, de mãos dadas, girando lentamente ao som dos “cocos” improvisados solitas, (o “coqueiro”), um ou mais dançarinos exibem suas virtuosidades coreográficas. Exaustos de dançar, os dançarinos do centro convidam um ou mais parceiros da roda, para substituí-los. O acompanhamento das cantigas, os cocos, é feito com instrumentos de percussão, tambores de variados tamanhos (GURGEL, 2009*, p. 107).

 

Cinquenta anos separam a primeira descrição da citação acima. O fragmento reproduzido no início deste artigo é do dia quinze de maio de dois mil e vinte e dois, anotação do meu diário de campo da edição de aniversário do Coco no Pé, evento organizado por amantes, percussionistas, coqueiros e coqueiras potiguares. A citação direta pertence ao livro “Espaço e Tempo do Folclore Potiguar” do pesquisador Deífilo Gurgel, fruto das suas pesquisas realizadas nos anos 1970 e 1980 com grupos folclóricos potiguares. Notarialmente, ambas menções dizem respeito à manifestação popular denominada coco de roda. Segundo Luís da Câmara Cascudo (2000), coco é uma dança popular nordestina, cantada nas praias e no sertão, com visível influência africana. Facilmente, uma descrição poderia substituir a outra no que diz respeito à estrutura e dinâmica da brincadeira, no entanto, é mais do que provável que a ação de meio século tenha promovido mudanças substanciais na prática brincante. Todavia, qual a importância que o tempo ocupa nas práticas culturais contemporâneas? O coco não é o foco deste artigo, utilizei a referência da brincadeira para ilustrar a pergunta que norteará o debate ensejado. Como pensar a ideia de tradição na contemporaneidade relacionada às manifestações culturais populares e de que forma a performance das brincadeiras inscreve e reinscreve memórias e sentidos de pertencimento? Apesar da minha vocação interdisciplinar enquanto músico, poeta, performer, brincante, o fio condutor da reflexão repousará sobre uma análise antropológica. Todavia, não direi que o texto estará contaminado por tais influências interdisciplinares, muito pelo contrário.

 

A ideia de tradição

Até o começo dos anos 1980, o conceito de “tradição” não possuía a relevância devida por parte das ciências sociais em geral. Para Max Weber (1994), uma das formas de dominação social ocorre através da tradição constituída em normas não legais, baseadas na crença de uma santidade das ordens e poderes existentes desde sempre, onde o conteúdo não está passível de alteração, unindo as ordens sociais. O sociólogo norte-americano Edward Shills (1981) em seu livro Tradition, procurou indicar os elementos que constituíram o surgimento e estruturação do conceito.

Tradição significa muitas coisas. No seu sentido mais simples e elementar, significa simplesmente um traditum; é qualquer coisa que é transmitida do passado para o presente. Não faz nenhuma declaração sobre o que é transmitido ou em que combinação específica ou se é um objeto físico ou uma construção cultural; não diz nada sobre quanto tempo foi entregue ou de que maneira, oralmente ou por escrito. (SHILLS, 1981, p.18)

Para Shills, a tradição surgiu a partir das ações humanas, seus pensamentos e imaginação, repassado de geração para geração; sendo assim, está envolta em uma relação entre o passado, presente e futuro, coordenando ações no cronotopo de uma comunidade. A origem etimológica da palavra vem do latim “traditio” que compreende um modo de transferir a posse da propriedade privada no direito romano. A ideia de tradição, segundo o autor, se formou nos séculos XVIII e XIX entre os estudiosos dos folclores, contos de fadas, mitos e lendas, costumes da vida camponesa, cerimônias e rituais religiosos seculares.

Na mesma década, especificamente em 1983, os historiadores Eric Hobsbawn e Terence Rangers publicaram o célebre livro A Invenção das Tradições. A obra, hoje tida como clássica nos estudos sócio-históricos sobre cultura popular, afirma que os sujeitos utilizam, assim como tomam de empréstimos, elementos simbólicos do passado para formalizar e ritualizar uma nova tradição. Ademais, destacam no livro, a importância da agência dos sujeitos na produção e reprodução destas tradições. Segundo eles, as tradições dividiam-se em três categorias superpostas:

A) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; B) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e C) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento. Embora as tradições dos tipos b) e c) tenham sido certamente inventadas (como as que simbolizam a submissão à autoridade na Índia britânica), pode-se partir do pressuposto de que o tipo a) é que prevaleceu, sendo as outras funções tomadas como implícitas ou derivadas de um sentido de identificação com uma “comunidade” e/ou as instituições que a representam, expressam ou simbolizam, tais como a “nação”. (HOBSBAWN; RANGER, 1990, p.36).

Os autores destacam as tradições inventadas como tentativas de produção de uma identidade comum entre os grupos sociais. Tal assertiva, já havia sido mencionada por Shills (1981) quando defendeu a existência de um senso de identidade e de filiação a um “passado” em comum por parte dos sujeitos que reivindicam uma tradição. Para ele, o sentido de identidade contribui para a transmissão e recepção entre gerações das tradições, todavia, alerta sobre a necessidade de pensar na agência dos sujeitos diante dos processos de representação e modificação das mesmas.

O avanço dos estudos anticoloniais, pós-coloniais e decoloniais reposicionaram o olhar sobre diversos conceitos, inclusive o de tradição. Embora o contato promovido pela colonialidade já estivesse presente em algumas preocupações de antropólogos notáveis como Malinowski (1929), e de forma mais contundente em outros esquecidos pelo cânone como Michel Leiris (2011), a introdução da perspectiva do subalterno provoca profundas transformações epistemológicas nas ciências.

A exploração colonial refletiu impactos significativos nas configurações culturais e sociais, consequentemente nas suas tradições. De um lado, o expansionismo colonial europeu impondo de forma violenta sua cultura pretensamente “universal”. Do outro lado, populações lutando para manter suas tradições, e por isso, em inúmeras ocasiões, precisou-se negociar, misturar, incorporar elementos culturais alheios como forma de sobrevivência da cultura (BHABHA, 2018).

A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um único mundo dominado pela Europa, significou para esse mundo uma configuração cultural, intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente à articulação de todas as formas de controle do trabalho em torno do capital, para estabelecer o capitalismo mundial. Com efeito, todas as experiências históricas, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento. (QUIJANO, 2005, p.121).

Pensar a noção de tradição mediante o impacto da colonização sobre diferentes culturas, implica necessariamente refletirmos sobre a ideia de temporalidade em torno do conceito. Tanto Hobsbawn e Ranger (1990) como Shills (1981) atribuem uma excessiva importância às implicações do tempo nas tradições. Edward Shills, por exemplo, entende ser necessária a transmissão da cultura por três gerações sucessivas para ser considerada tradicional. Hobsbawn e Ranger forjaram o termo “invenção da tradição” como forma de distinção entre as tradições “genuínas” e as que surgiam consequentes destas. No entanto, os efeitos implicados na condição colonial das populações subalternizadas apontam outras perspectivas no que tange a compreensão da tradição, Bhabha (2018) sugere que

A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão na “minoria”. (2018, p.21)

Ou seja, o reconhecimento que a tradição outorga a identificação é apenas parcial, pois ao reinscrever o passado, este introduz outras temporalidades desmesuradas na escrita da tradição. Os embates existentes nas fronteiras acerca da diferença cultural perturbam a ideia de tradição concebida hegemonicamente e historicamente.  Isto fica evidente quando analisamos a produção literária e científica em torno das manifestações culturais populares brasileiras no final do século XIX e início do século XX. O apego por parte dos pesquisadores da época em buscar e reafirmar a “pureza” de determinada tradição, ou mesmo a obsessão para encontrar um ponto de origem de determinada prática cultural, levou por muitas vezes a defesa do inevitável desaparecimento das manifestações culturais. Ademais, a incorporação de novos elementos ou associações de símbolos exteriores por parte destas eram condenados como processos de perda da autenticidade.

Para o lamento de muitos folcloristas e pesquisadores desejosos por manifestações culturais ou símbolos “puros”, uma simples análise de qualquer manifestação cultural em perspectiva histórica, revela que os marcadores culturais não são transmitidos intactos de geração para geração, mas são produtos de um processo ininterrupto de invenção ou fabricação (TURNER, 1997). Pelo seu caráter fluído e inventivo, aqueles ou aquelas interessadas no estudo das tradições não têm como tarefa encontrar a porção autêntica, mas entender o processo pelo qual as tradições passam a ser aceitas como genuínas.

 

A relação entre tradição e cultura popular

O termo “cultura popular” só ganha sentido a partir do século XVI, numa tentativa organizada pela elite europeia em extinguir os elementos considerados supersticiosos, mágicos ou profanos das práticas da maioria da população (BURKE, 2010). No século XIX, essa concepção identifica o povo, sobretudo os habitantes das zonas rurais, como possuidores de uma cultura “pura”, “natural”, herdada do passado. Não é de se espantar que os pesquisadores no início do século XX tenham condenado inúmeras manifestações culturais à morte ou desaparecimento paulatino na medida que tomavam contato com os grandes centros urbanos, já que por muitos anos, a noção de cultura popular esteve vinculada a manifestações estáveis e imutáveis. Para Stuart Hall (2009), a cultura popular se constituiu ao longo da história enquanto um lugar de resistência às maneiras de controlar e “reformar” o povo, e por esse motivo, sempre esteve associado às questões concernentes à tradição. Apesar disso, ele considera que a cultura popular não pode ser vinculada apenas como local de luta e resistência, mas também enquanto recinto de apropriação e expropriação. No mundo de hoje, a definição ganhou novas implicações teóricas quando considerado os processos denominados de hibridismo, transculturação e diáspora.

[...] os elementos de circulação e fluxos informativos-comunicacionais redefinem na base a categoria mesma de cultura popular, fazendo-a interagir num contexto espesso dos relacionamentos sociais globalizados e transculturais. Isso não significa a eliminação dos arranjos populares-nacionais, mesmo porque os Estados-Nações constituem ainda agentes decisivos na cena mundial. Conquanto percebe-se que as transformações no conceito, dão margem a introduzir no debate outras armadilhas identitárias não redutíveis à matriz romântica que circunscreve a cultura popular no lugar pátrio originário, e tampouco aos níveis distintamente estanques de organização de cultura, mas desloca-se cada vez mais para as apropriações e aos usos e às modalidades de hibridismo que tomam contornos (FARIAS, 1997, p. 40).

A partir desta premissa, é possível relacionar a ideia de cultura popular dentro de um ambiente de ressignificação das representações simbólicas dos sujeitos, sobretudo no contexto de dominação colonial, o que já denominamos aqui como estratégias de sobrevivência da cultura (BHABHA, 2018). Diante de territórios contraditórios e ambivalentes onde os sistemas culturais são erguidos, as reivindicações hierárquicas de pureza e originalidade inerentes à cultura são insustentáveis, mesmo antes de recorrer às instâncias históricas empíricas que revelam o seu hibridismo. Nesta perspectiva, pensar na cultura popular em torno da noção de tradição compreenderia identificar as relações entre agência e domínio na construção da manifestação cultural.

[...] o essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a ‘cultura popular’ em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma definição de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural. Considera o domínio das formas e atividades culturais como um campo sempre variável. Observa o processo pelo qual as relações de domínio e subordinação são articuladas. Trata-se de um processo pelo qual algumas coisas são ativamente preferidas para que outras possam ser destronadas (HALL, 2003, p. 241).

Negociar marcadores, misturar, incorporar elementos diversos de outras manifestações, são estratégias que pretendem possibilitar a apresentação, exteriorização, performances de determinada manifestação cultural. Hall (2009) chama atenção ao falar do termo “popular” para necessidade de contextualizar o período histórico no qual ele está inserido, pois as culturas são móveis, existem relações de domínio e subordinação, o que era tido como erudito ou marginal em uma época pode não ser em outro período. É justamente nestes interstícios, determinada manifestação cultural assume processos de pertencimento que podem restringir-se a um grupo específico ou acender a um caráter coletivo de toda uma região, como o exemplo do maracatu para Pernambuco (REAL, 1990), ou até mesmo de um país, como o samba para o Brasil (VIANNA, 1995). Isto é, os elementos da tradição podem ser reorganizados e articulados com distintas práticas, logrando novo significado e relevância. pode (HALL, 2003).

Sendo assim, as tradições populares são recintos privilegiados para pensarmos questões de pertencimento, identidade coletiva, estética, religiosidade, conflitos sociais e políticos. A questão central já não passa pela autenticidade das manifestações ditas tradicionais, mas sim, pela identificação de um núcleo simbólico capaz de expressar um certo tipo de sentimento, de convívio social e de visão de mundo (CARVALHO, 1991). A cultura popular resiste ao avanço do tempo, às perseguições das elites, aos processos de invisibilização, criando e recriando suas fronteiras a fim de possibilitar a sua performance.

 

A performance e a escrita da memória

                                                           

Em fevereiro de 2018, tive a oportunidade de viajar com a Nação Zambêracatu, grupo de maracatu do qual faço parte, para o 5º Encontro Noite dos Tambores promovido pelo grupo Herdeiros de Zumbi em Sibaúma, litoral sul do Rio Grande do Norte. No mesmo evento, estava presente e se apresentou o Coco de Zambê do Mestre Geraldo, um dos principais cocos potiguares e inspiração para a Nação Zambêracatu. Uma fala de um dos integrantes chamou minha atenção. Ao comentar sobre a participação no Circuito Sonora Brasil, projeto temático que promoveu a circulação de grupos culturais de coco de roda, samba de coco, coco de pareia, promovido pelo SESC (Serviço Social do Comércio), destacou a importância da participação do zambê na turnê por mais de 55 cidades brasileiras e na reoxigenação das atividades que andavam paradas.

O episódio em questão é extremamente ilustrativo para destacar a importância das apresentações, nomeada aqui como performance, para manutenção da brincadeira, assim como, para reelaborações de aspectos da sua prática. Além disso, como mencionei no início do artigo, as práticas culturais subalternas inseridas no contexto de dominação colonial, majoritariamente foram impelidas a negociar marcadores simbólicos para sobreviver, sobretudo para despistar a perseguição. Como aconteceu com as Nações de Maracatu em Pernambuco, autorizadas pelo governo para praticarem seus batuques, acolheram os terreiros de candomblé perseguidos pela desenfreada violência estatal (LIMA, 2006; FERNANDES, 1937; REAL, 1990).

A cultura popular nasce no terreno da resistência, na peleja para manter viva as suas manifestações. E não se trata apenas do direito de brincar, pois o significado dessas expressões ultrapassa o caráter exclusivamente lúdico costumeiramente associado. Don Handelman (1977) sugere pensar o brincar (play) como sistemas de metacomunicação fundamentais para a vida social. Tanto o ritual como o brincar, concebem a sociedade, não apenas enquanto uma ordem social, mas também como moral. A brincadeira, assim como o ritual, é o coração da performance (SCHECHNER, 2002). A modernidade buscou relacionar o ritual a seriedade, enquanto colocou o brincar na arena da permissividade e da brandura, o que contribuiu para que as ciências sociais em geral, incluindo a antropologia, não dessem a devida atenção à brincadeira como elemento importante da vida social (HANDELMAN, 1977). Na minha dissertação de mestrado (NUNES, 2020), por exemplo, discuti como o maracatu da Nação Zambêracatu para além de uma brincadeira, se constituía como uma ferramenta de estruturação de marcadores identitários coletivos de jovens negros, assim como organizava e rememorava a ancestralidade negra da cultura potiguar, através das suas performances nos mais diversos espaços da cidade.

A cultura humana é fundamentalmente performativa (SCHECHNER, 2002). Todas as nossas ações são permeadas por representações simbólicas. A noção de performance vem sendo debatida com exaustão nas últimas décadas como forma de compreender a produção de símbolos na vida humana. O conceito não diz respeito apenas à antropologia, possui relevância em diversas áreas de estudos. A ideia de cultura enquanto produto da interação dos atores sociais, estes por vezes, agentes conscientes que interpretam e intervém na realidade, transformando-a, é fundamental na elaboração da mesma. Para Goffman (1975), a performance social compreende “[...] toda atividade de um indivíduo que ocorra durante um período marcado por sua presença contínua mediante um conjunto de observadores e a qual possui alguma influência sobre os mesmos” (p. 22). Posteriormente, Victor Turner (2005) desenvolveu o conceito de drama social como ferramenta analítica para aplicar a uma ampla variedade de situações históricas através de um modelo  de cultura específica do teatro. Para Turner, o drama social é capaz de operar sobre a construção de um quadro temporal especial onde o ritmo dos acontecimentos dentro de uma narrativa está predeterminado por um desfecho antecipado. A partir das experiências, inauguram-se situações liminares que se expressam através das fendas da estrutura social, interrompendo o fluxo da vida cotidiana e provocando novas formas de ser e estar no mundo por parte dos sujeitos. A antropóloga americana Barbara Myerhoff (1982) através do conceito de “cerimônias definitórias” destaca o que chama de “autobiografias” coletivas pelos quais os grupos sociais formulam sua identidade a partir dos relatos de sua história. Paul Connerton (1999), defende que através das cerimônias comemorativas e práticas corporais, os grupos conservam e transmitem as imagens e conhecimentos recordados do passado. 

A nossa percepção sobre o presente é mediada pelas informações que possuímos sobre o passado. Não obstante, o controle sobre a memória implicava também imposição sobre o que recordar, isto é, sobre quais significados e sentidos elaborar no presente. Para Huyssen (2000), a memória se tornou uma obsessão cultural em todos os cantos do planeta. Ele identifica que as culturas de memória estão intimamente ligadas às questões de minorias e gênero na reavaliação dos passados, na tentativa de reinscrever a história de um novo mundo, garantindo um futuro de memória.

Por isso, a disputa em torno da memória perpassa o direito de grupos ou coletivos reivindicarem os seus marcadores culturais, a sua identidade. Analisando em uma perspectiva mais geral, tais cerimônias, as chamemos de comemorativas ou definitórias, expressam o desejo de uma comunidade ou grupo em recordar sua identidade, representando-a como uma metanarrativa. Na medida em que as performances ocorrem, sobretudo nas circunstâncias cerimoniais, a memória social é vivida e constituída (CONNERTON, 1999).  No caso da Nação Zambêracatu, por exemplo, as apresentações no 2 de fevereiro em Natal com o “Batuque para Rainha do Mar”, evento organizado desde 2012, transformaram-se numa das principais celebrações afrorreligiosas do Rio Grande do Norte. O candomblé vai para a rua, materializa-se nos tambores, agbês, nos corpos dançantes que preenchem uma das principais avenidas da cidade do Natal para afirmar a existência e importância da cultura negra potiguar. Na introdução de “Secular ritual”, Sally Moore e Barbara Myerhoff dizem que “[...] toda cerimônia coletiva pode ser interpretada como uma declaração cultural sobre a ordem cultural contra um vazio cultural” (MEYERHOFF e MOORE, 1977, p.16). As lembranças acionadas pela performance cumprem uma função de declarar sobre acontecimentos passados, estabelecem uma sensação de continuidade com o presente, organizam o pertencimento e estruturam a identidade de um grupo.

 

Apontamentos

O desenho do novo internacionalismo se constrói a partir das narrativas da diáspora cultural e política, das retomadas, dos grandes deslocamentos sociais dos grupos vítimas dos empreendimentos coloniais. A cultura para se manter duradoura precisa estar em movimento constante

[...] as pessoas, enquanto atores e redes de atores, têm de inventar cultura, refletir sobre ela, fazer experiências com ela, recordá-la (ou armazená-la de alguma outra maneira), discuti-la e transmiti-la. Ou seja, no fluxo de culturas, o que se ganha num lugar não se perde na origem. Mas há uma reorganização da cultura no espaço. (HANNERZ, 1997, p.12).

O fluxo de pessoas, imagens e significados entre as culturas não enfraquece o sentido local, pois os grupos possuem distintos sentimentos de filiação a estas localidades. Uma determinada manifestação cultural pode por ora submergir, posteriormente submergir em outro território de acordo com os interesses dos grupos e coletivos, seja para recordar determinado fato que possibilite ordenar o sentido de pertencimento no presente, como também constituam uma narrativa declarativa em torno de uma disputa de memória. A tradição de uma manifestação cultural corresponde exatamente à relevância de determinado símbolo para o sentimento que estruture a identidade de um povo, região, país. O ato de selecionar e armazenar são práticas comuns na composição do mosaico (imagens) da memória, possibilitando a partir dos fragmentos coletados lembrar o que poderia ter sido esquecido, e enfim, com auxílio da experiência (erfahrung) e da vivência (erlebnis) conduzir a rememoração ativa da memória individual e coletiva (BENJAMIN, 1987).

Voltemos a menção do coco de roda no início deste artigo, a retomada da brincadeira pelos coqueiros e coqueiras do Coco no Pé do Morro do Careca incorpora elementos específicos do seu tempo, sentidos e signos dos sujeitos dentro do seu contexto social e espacial. Entretanto, os fios que tecem e bordam essa tradição não são lineares e sim enredados. No mundo contemporâneo, pensar na tradicionalidade de uma manifestação cultural corresponde as relações constituída entre os sujeitos, com os territórios e símbolos em disputa na sociedade, em uma região, até mesmo uma nação. As feridas coloniais provocadas pelo Ocidente colocaram extensos obstáculos no que concerne a sistematização da memória dos povos subalternizados, como sugere Mbembe (2014), ao retomar a agência da sua própria cronografia, a reinscrita da história deve ser considerada um ato de imaginação moral.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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Foto do banner: Felipe da Silva Nunes

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