Por Carla Dameane Pereira de Souza
13/07/2022
Resumo: A partir do conto La agoñia de Rasu-Ñiti (1961), de José María Arguedas, neste artigo[1] estabelecerei um diálogo entre a representação dos dançarinos de Tijeras neste conto e no romance Willka Nina El hijo del Wamani (2015) de Amiel Cayo, ressaltando a ideia de continuidade, quer dizer, da transmissão dos saberes e competências que são específicas à prática dos Danzaq, que tradicionalmente são homens. Nas duas narrativas as mulheres ocupam os papeis de esposas, filhas, mães e a transmissão deste saber se realiza entre homens. Com base nesta premissa e trazendo este tema à contemporaneidade, o debate terá seu desenvolvimento na exposição de minha experiência de imersão cultural como aprendiz e praticante da Danza de las Tijeras ayacuchana em Lima, no Peru. Considerando o processo histórico peruano atravessado por dinâmicas migratórias internas, sobretudo na segunda metade do século XX, a questão principal a ser discutida é: como esta prática artística constitui-se como uma performance ritual que resiste aos contatos culturais e se mantém como expressão sagrada das identidades andinas? Para isso, farei uma breve revisão da teoria do conceito de sujeito migrante afim de refletir como a Danza de las Tijeras ayacuchana deslocou-se do interior do Peru até Lima, acompanhando aqueles que a praticam, ao mesmo tempo em que apresentarei minha experiência de formação como Warmi Danzaq, junto a outras mulheres dançarinas.
Palavras-chave: Danza de las tijeras; warmi danzaq; performance; sujeito migrante.
I O Pasacalle é meu abre alas
Aprendi que na Danza de las Tijeras ayacuchana, o Pasacalle é o momento inicial de apresentação do Danzaq ou da Warmi Danzaq. É a primeira sequência, aquela com a qual, elegantemente e de forma sofisticada nós dançarinas nos apresentamos e saudamos o público. Introduzir para o leitor de que se trata este texto, seus objetivos, a metodologia de trabalho utilizada na pesquisa de campo, seus resultados e outras pautas pertinentes à escritura acadêmica é, para mim, como um Pasacalle, já que desde o primeiro contato com meu leitor quero deixar explícito que o que vou apresentar é produto de uma pesquisa que se iniciou a partir de bibliografias especializadas, mas tomou proporções outras, da ordem do sensível, possíveis graças a um exercício de imersão cultural.
Em diálogo com a epistemologia dos conhecimentos ausentes de Boaventura de Sousa Santos (2017), durante o período em que realizei estudos de pós-doutorado em Lima, como pesquisadora vinculada à Pontificia Universidad Católica del Perú - PUCP, desenvolvi o conceito de dramaturgias ausentes o qual considero pertinente para refletir a condição teatralizada ou dramática de determinadas práticas culturais e acontecimentos sociais. Tais acontecimentos e práticas, caracterizados por uma estética visual e estrutura narrativa podem desencadear etnografias e partituras cênicas – textos dramáticos, roteiros para ações cênico-performativas – fundando desse modo uma epistemologia na perspectiva em que propõe Sousa Santos, no marco da epistemologia dos conhecimentos ausentes, que segundo ele “no son prácticas ignorantes, son más bien prácticas de conocimientos rivales, alternativos” (2017, p. 203). São conhecimentos que, ainda que sejam opostos aos conhecimentos da ciência moderna, são igualmente complementares a ela. As dramaturgias ausentes, uma vez visibilizadas geram conhecimentos e transmitem experiencias e formas de vida, expressões culturais e cosmogônicas invisibilizadas ou atravessadas de forma violenta pelo projeto de modernidade eurocêntrica, que teve início com a invasão dos territórios que hoje formam parte da América Latina, e que segue vigente com a consolidação do capitalismo global. Apesar disso, a colonialidade do poder (QUIJANO, 1992, p. 12) que faz parte de nossa identidade latino-americana não foi capaz de apagar as diferentes características de nossas subjetividades e práticas culturais produtoras de conhecimento.
Este texto, portanto, é produto de uma revisão bibliográfica e de um período de imersão cultural que alcançaram dimensões exploratórias não previstas. Por isso, reivindico à sua natureza acadêmica o tom do relato testemunhal, uma vez que é a partir de minha enunciação implicada que se dará as reflexões aqui propostas o que, por sua vez, constitui a natureza de uma práxis intelectual aberta aos riscos da afetação.
II Esta Porta
Imagem 01 – Esta Porta
Centro Artesanal Shosaku Nagase. Huamanga Ayacucho.
02 de novembro de 2018. Fotografia de Carla Dameane[2].
Em Huamanga, Ayacucho, parei diante de uma porta que me permitia adentrar ao interior de um espaço de comércio – o Centro Artesanal Shosaku Nagase, que nas décadas de 1960 e 1970 havia sido uma penitenciária. O Danzaq pintado nesta porta, em tamanho natural, foi uma espécie de convite para que eu decidisse ingressar no universo da Danza de las Tijeras, já que sua silhueta estática provocava em mim lembranças e evocava movimentos. Estes movimentos, congelados na pintura, impregnavam o meu corpo de uma sensação nostálgica em relação às apresentações de Danzantes de las Tijeras que eu havia assistido durante o meu primeiro período de estudos no Peru, entre os anos de 2011 e 2012. Esta porta, tornou-se um portal que me levou à literatura arguediana na qual os Danzantes de las Tijeras aparecem como personagens, em Yawar Fiesta (1941), em Los ríos profundos (1958), em La agonía de Rasu-Ñiti (1961), em El Zorro de Arriba y el Zorro de Abajo (1969), e a um livro, um romance curto que recentemente havia lido e que trazia como tema a prática e a transmissão da Danza de las Tijeras, Willka Nina El hijo del Wamani (2015), de Amiel Cayo. A potência desta imagem me levou às narrativas sobre a prática da Danza de las Tijeras e me provocou a aproximar-me deste universo para conhecer as atuais estratégias de sua transmissão e de sua prática.
Em Lima, após uma conversa com a atriz e Warmi Danzaq Asiri Sonqo de Ayacucho – Daniela Hudtwalcker Zavala, passei a frequentar cerimônias de Antipanakuy, que são encontros realizados em locais específicos, nos quais dois ou mais Danzantes de Tijeras demostram suas competências. Seguidamente a esta primeira aproximação, eu me inscrevi nas oficinas do Maestro Danzaq Qaqa Ñiti de Puquio – Roberto Saira Llana, Diretor Danzaq da Escuela Danza de las Tijeras Puquio Ayacucho-Perú. A minha inscrição nas oficinas de Danza de las Tijeras consolidou a trajetória de minha imersão na aprendizagem da Danza de las Tijeras, de modo que me tornei discípula do Maestro Qaqa Ñiti de Puquio, recebendo de forma criativa a transmissão de seus saberes.
Considero a Danza de las Tijeras um saber, uma arte ritual que é também um meio de recordar e repetir uma prática artística na qual o Danzaq ou Warmi Danzaq configura-se como um/uma performer. Quem dança e toca suas Tijeras no transcurso de sua aprendizagem pode improvisar, pode alcançar um estilo próprio e desenvolver múltiplas habilidades que são características às várias sequências que fazem parte de uma apresentação, seja em festas patronais ou em eventos celebrativos de curta duração – especialmente se consideramos as adaptações pelas quais a dança tem passado em Lima conforme nos mostra Lucy Núñez Rebaza em seu livro Los Dansaq (1990).
A Danza de las Tijeras é originária de quatro estados (departamentos) peruanos – Ayacucho, Apurímac, Huancavelica e Arequipa. Em cada um destes estados, como nos explicava o Maestro Qaqa Ñiti de Puquio, há formas estéticas diferentes de praticá-la, seja no que se refere à melodia dos instrumentais na música, ao vestuário e também aos nomes que são atribuídos aos dançarinos. Em Ayacucho somos Danzaq ou Warmi Danzaq, em Apurímac os chamam de Saqras, em Huancavelica são Galas ou Warmi Galas e em Arequipa (região norte) são chamados de Villanos.
A partir da imersão cultural entendo que a Danza de las Tijeras é uma performance tanto em sua prática quando em sua transmissão – do maestro para seu discípulo. Eu a considero uma performance, pensando teoricamente com Diana Taylor (2015) sobre performances que “operan como actos vitales de transferencia al transmitir saber social, memoria, y un sentido de identidad a través de acciones reiteradas, o de lo que Richard Schechner llama “conducta restaurada” o dos veces actuada (twice behaved-behavior)” (Diana Taylor (2015, p. 22). Com esta citação de Taylor, podemos pensar nos exemplos literários já assinalados acima, especialmente, em La agoñia de Rasu-Ñiti (1961) de José María Arguedas e Willka Nina El hijo del Wamani (2015), de Amiel Cayo.
Em La agonía de Rasu Ñiti, conto de 1961, Arguedas narra os últimos acontecimentos na vida de um Danzaq, Pedro Huancayre, que antes de morrer dança uma agonia. A agonia é uma das sequências da Danza de las Tijeras. Conhecida também como wañurayay, segundo Yaranga Valderrama (2006, p. 11), nesta sequência o Danzaq realiza um ensaio/representação de sua morte e ascensão ao céu (Hanah Pacha). No conto, durante a realização da dança, além dos músicos Lurucha, o arpista, e Don Pascual o violinista, da sua esposa e de sua filha, está o jovem discípulo de Rasu Ñiti, Atok’sayku, que, após a morte de seu maestro consolida a transmissão do saber adquirido. Observemos o trecho do conto:
“Atok’sayku” saltó junto al cadáver. Se elevó ahí mismo, danzando; tocó las tijeras que brillaban. Sus pies volaban. Todos los estaban mirando. Lurucha tocó el lucero kanchi (alumbrar de la estrella), del wallpa wak’ay (canto del gallo) con que empezaban las competencias de los dansak’ a la medianoche.
__¡El Wamani aquí! ¡En mi cabeza! ¡En mi pecho, aleteando! – dijo el nuevo dansak’.
Nadie se movió.
Era él, el padre “Rasu Ñiti”, renacido, con tendones de bestia tierna y el fuego del Wamani, su corriente de siglos aleteando. (ARGUEDAS, 1983, p. 209).
A transmissão do saber e da fé, presente no conto, é potente quanto à caracterização da Danza de las Tijeras como resistente em sua permanência como uma arte ancestral que segue sendo praticada até a atualidade. Se me refiro a isso é devido ao fato de que durante o período de imersão cultural, junto a praticantes da Danza de las Tijeras observei como os Danzaq mais velhos tornam-se, naturalmente, maestros de jovens e crianças nos diferentes bairros e distritos de Lima. De forma efetiva, a Danza de las Tijeras é uma prática cultural e performance ritual nas festas patronais e em outros eventos que se realizam na capital do Peru e nas quais as comunidades de migrantes encontram um espaço para a manifestação de seus valores culturais e expressão de sua identidade. Sobre o conceito de sujeito migrante Antonio Cornejo Polar (1996) nos explica que este
(…) tanto está expuesto a fenómenos sincréticos, en relación a las fuerzas que surgen de su nuevo espacio de experiencia, cuanto puede fijar deslindes relativamente claros entre los dos o más momentos de su itinerario. Al parecer, la conciencia del migrante está más atenta a la fijación de sus experiencias distintas y encontradas que a la formulación de una síntesis globalizadora (CORNEJO POLAR, 1996, p. 840-841).
Desta maneira, os eventos que reúnem as comunidades de migrantes, que resultam de um processo de migrações internas partindo das regiões serranas do Peru até Lima ao longo do século XX, em especial na segunda metade, convertem-se em espaços e situações nas quais distintas experiências migratórias podem fixar-se e se encontrar, como sinaliza o crítico literário. Nestes eventos a Danza de las Tijeras descolada de seu espaço de origem e prática anterior, encontra um lugar de convergência de sentidos de identidades, é um espaço parecido aquele do qual fala Cornejo Polar, onde
(…) cualquier sentido puede solaparse y refundirse precisamente en el extremo que aparentemente se le opone, como también -y tal vez sobre todo estratificar como instancias separadas las diversas vivencias que forman su fluido itinerario a través de distintos tiempos y espacios. Repito en este caso mi estrategia de leer no tanto la linealidad de un discurso cuanto su espesor-bajo el supuesto, otras veces aludido (Cornejo, 1994, 18 passim), de que la historia corre, pero también se adensa en el tiempo. Después de todo no hay mejor discurso sobre la identidad que el que se enraíza en la incesante (e inevitable) transformación (CORNEJO POLAR, 1996, p. 841).
Neste sentido, é importante sinalizar que, se houve e ainda ocorrem transformações ou adaptações na prática e transmissão da Danza de las Tijeras em Lima, os espaços em que os migrantes e descendentes de migrantes, nascidos em Lima, se reúnem para compartilhar o sentido de identidade em direção a este saber, são espaços de convergência, de transformação e de resistência. São espaços nos quais é possível colocar a memória em movimento, resistir aos esquecimentos impostos e afirmar os saberes constituídos pela fé nos Deuses Tutelares, nos deuses de sua cosmogonia. Ainda, é possível recuperar e reviver a relação possível desta dança com o Taki Onqoy.
O Taki Onkoy foi um movimento messiânico que costuma ser traduzido como “canto/dança de enfermidade ou de sofrimento”. Este movimento possuía um objetivo decolonizador, anticolonial; desenvolveu estratégias de defesa da cultura e das manifestações culturais e religiosas andinas. De acordo com as investigações de Nathan Wachtel (1973), o Taki Onqoy se deu como uma forma de protesto, resposta política frente às divisões de Atun Lucanas e Chorcos, territórios que pertenciam ao atual estado de Ayacucho. Isso ocorreu em paralelo e em diálogo com o movimento de resistência incásica organizado por Manco Inca II e seu filho Titu Cusi Yupanqui, em Vilcabamba[3]. O Taki Onqoy se difundiu por toda a jurisdição de Cusco, alcançou os territórios de Arequipa, Chuquisaca e La Paz[4].
Em direção à costa peruana, chegou até Lima, mantendo-se vigente por sete anos. Calcula-se que, neste período, aproximadamente oito mil indígenas sofreram castigos severos por sua adesão ao movimento. A rebeldia destes indígenas consistia, por sua vez, em crer no renascimento das Huacas, que habitam os lugares sagrados e a natureza (pedras, montanhas, montes, as cataratas), responsáveis por sua proteção e ajuda contra o colonizador violento. A estratégia subversiva dos rebeldes esteve orientada pela simplicidade de um comportamento que, em forma de expressão corporal, rechaçava a cultura dominante através da preparação mística e invocação de seus deuses:
(...) para prepararse al retorno de sus dioses, los nativos danzaban sin descanso hasta caer en trance, durante el cual, entre temblores y espasmos, renegaban de su catolicismo; al volver en si declaraban solemnemente estar poseídos por alguna de sus “guacas” las que, desprendiéndose de las montañas, nubes o fuentes, – santuarios habituales – usaban en adelante el cuerpo de los hombres para manifestarse. (MILLONES, 1973, p. 87-88).
Como prática cultural performativa de rechaço à colonização e catequização dos territórios e corpos, a dança estava associada aos rituais considerados pagãos. Os corpos dançantes do Taki Onqoy foram condenados e censurados pela inquisição. Ainda assim, Antonio Salvador Villegas Falcón, considera que não há relação direta da Danza de las Tijeras com o Taki Onqoy. Em seus estudos o pesquisador diz que
(…) es poco probable que en el corto tiempo que duró el taqui ongoy, siete años, haya sucedido la transformación de los elementos indígenas que constituían las danzas nativas en general, y de las tijeras en particular, y mucho menos aún si atendemos a que la característica esencial de este movimiento fue su resistencia y oposición al uso de cualquier elemento cultural, objeto y costumbres del invasor occidental (FALCÓN, 1998, p. 32).
Já Luis Millones e Hiroyasu Tomoeda (1998, p. 28), com base nos escritos de Bartolomé Alvarez, uma testemunha do Taki Onqoy, acreditam que a Danza de las Tijeras tem relação com o movimento anticolonial podendo ser “más valeroso su carácter de posible antecedente de los danzantes de tijeras” (1998, p. 28). O nome indicado pelos inquisidores para designar os praticantes da dança faz referência a uma prática demoníaca, fato que, segundo meu ponto de vista, pensando com Millones y Tomoeda (1998, p. 26-31) reafirma sua característica genealógica por se tratar de uma performance que propõe a inscrição de um corpo antievangelizador e decolonizador em um espaço de disputa simbólica e territorial. Após a dissolução do Taki Onqoy, que deixou como consequência a rigidez do sistema inquisidor colonial, os dançarinos herdeiros dessa memória incorporam ao vestuário e às sequencias elementos hispânicos proporcionados pelos contatos culturais. Ainda assim, essas mudanças e adaptações funcionaram como estratégia de representação para que pudessem seguir dançando e reafirmando sua fé nos Apus Wamanis. Trata-se de um ritual que para o colonizador possuía traços subversivos devido ao seu pertencimento identitário e ancestral e em sua negação e enfrentamento ao cristianismo.
No romance de Amiel Cayo, Willka Nina El hijo del Wamani, ele nos apresenta, recuperando o personagem arguediano “Atok’sayku”, a transmissão da Danza de las Tijeras, este saber incorporado, como a garantia de sua sobrevivência e como homenagem à tradição da Danza de las Tijeras e aos seus praticantes. No romance curto, Josué Vila Vila é um menino que, desde muito pequeno, gostava da Danza de las Tijeras, de assistir as apresentações. Motivado por sua mãe, começa a incessante procura por um maestro para que o ensine e o ajude a aperfeiçoar seus conhecimentos sobre a prática e os mistérios da dança. Apadrinhado por Don Laureano, um violinista que o presenteia com seu primeiro vestuário, após tornar-se órfão Josué sai a procura de Atoq Sayku, de quem Don Laureano era grande admirador. Ao encontrar a casa de Atoq Sayku, Josué manifesta o desejo de tornar-se seu discípulo:
La torre de la iglesia casi cubría la casa con su sombra y el contraluz del sol dibujaba la silueta de la cruz sobre la torre. Josué se acercó y tocó la puerta; desde el fondo le respondió el ladrido de un perro y luego una voz que preguntaba:
__ ¿Quien?
__ Yo. – respondió el niño, controlando sus nervios.
Se abrió la puerta y la escasa luz de la tarde dibujó la silueta de una niña de la edad de Josué.
__ ¿Está el maestro Atoq Sayku? – preguntó.
__ Si, es mi papá – respondió la niña y entró corriendo a la casa.
__ ¡Papá, te buscan!
__ ¡¿Quién es?! – se escuchó la voz de un hombre que salía rengueando desde el interior de la casa. En el umbral de la puerta, ambos personajes se quedaron estáticos, cruzando la mirada como la primera vez.
(…)
Hizo pasar al muchacho al interior de la casa, la cual estaba iluminada por un foco. En las paredes, se podían ver algunos recortes periodísticos antiguos de las hazañas del danzaq; los titulares hablaban de sus viajes al extranjero.
__ Esto me ha dado don Laureano, me dijo que lo abriera cuando lo encontrara a usted – mostró el paquete que traía.
__ Entonces, ábrelo; es el momento, ¿no? – respondió el danzaq acomodándose en una banca.
Josué desató lentamente el paquete y la luz del foco empezó a develar los delicados bordados de un traje de danzante; el reflejo de los espejos en forma de estrella iluminaba el rostro de Josué, en el que, poco a poco, se dibujó una sonrisa grande. Sus manos colocaron el delicado traje en el piso, extendiéndole como si se tratara de una persona. A la vista se notaba que el traje había sido utilizado, la tela de la rodilla del pantalón estaba gastada, las cintas de la montera un poco descolorida por el tiempo, pero eso no opacaba en absoluto la sorpresa de Josué; ¡era la primera vez que iba a tener un traje propio!
__ He venido a aprender con usted – dijo Josué mirando firmemente a Atoq Sayku.
__ Pero tus padres deben estar buscándote. El muchacho le contó al maestro todo lo sucedido con su familia y este, conmovido por el relato, decidió aceptar a Josué en su casa.
__ Está bien, puedes quedarte conmigo; te voy a enseñar todo lo que sé, ya que Dios no me dio la gracia de tener un hijo varón como tú – respondió en tono amable.
(CAYO, 2015, p. 42-44).
Nas duas narrativas literárias apresentadas até aqui há um ponto em comum entre elas que é possível problematizar, além dos detalhes relacionados à transmissão deste saber entre maestro e discípulo. Refiro-me ao fato de que na contemporaneidade já se vislumbra a inserção das mulheres na Danza de las Tijeras ayacuchana. Nos dois exemplos literários, ainda que os dois Maestros Dansaq Rasu Ñiti e Atoq Sayku tivessem filhas mulheres, a transmissão de seu saber se deu entre homens.
Nas primeiras vezes em que li estas narrativas não havia me dado conta de que havia certa especificidade de gênero na transmissão deste saber que se dava, com certa exclusividade, entre homens. Foi através da prática como aprendiz que pude observar a presença reduzida de Warmi Danzaq na comunidade de Danzantes de Tijeras ayacuchana em Lima, ainda que esta seja já uma realidade a partir da iniciativa de jovens que desejam aprender, de maestros dispostos a transmitir seus saberes às mulheres interessadas e, ainda, quando a transmissão se dá em família – de pai para filha. Sobre o tema, uma referência anterior que eu tinha foi através do curta metragem de Gabriela Yepes, Danzak, de 2008, igualmente inspirado no conto “La agonía de Rasu Ñiti”. No curta, uma menina, filha de um Danzaq enfermo – impede que sua mãe venda o vestuário de seu pai e ao torná-lo seu converte-se em Warmi Danzaq. A menina que interpreta a personagem Nina, filha do Danzaq, é Hellen Sly Sánchez, a Warmi Danzaq Torbellina de Mayo-Luren e seu pai, que interpreta Rasu Ñiti es Paul Aroni Ortiz, Apu Misti de Mayobamba. As referências na literatura e no cinema a estas questões, ainda que de modo transversal, são importantes por promover o diálogo sobre aspectos inerentes ao processo de transmissão da Danza de las Tijeras como um saber.
III A técnica e a fé
Imagem 02 – Pachatinkay de Nina Sonqo de Ayacucho.
Museo de Sitio Huaca Huallamarca.
Lima, Peru. 14 de julho de 2019. Fotografia de Paula Virreira.
A partir de minha prática como professora e pesquisadora, o meu interesse em aprender a Danza de las Tijeras foi, explicitamente, motivado pela possibilidade de deixar-me afetar pelo caráter sagrado desta dança. Na definição de Rodrigo Montoya,
La Danza de las tijeras es un modo de aparición clandestina, enmascarada, del culto a los Wamanis o Apus. Comenzó, - probablemente – en Huamanga, después de 1565, como una de las posibilidades de desarrollo y continuación del Taki Onqoy, aquel “baile del sufrimiento” surgido como primera respuesta a la invasión española. Entonces las Huacas prehispánicas se rebelaron contra España encarnándose en determinadas personas, las que poseídas por los dioses perdieron el espirito, cantaron y danzaron en un éxtasis profundo, proponiendo el regreso al antiguo orden y exigiendo a los hombres y mujeres de los ayllus no mezclarse con los españoles. Estas Huacas o Dioses locales viven en los en las montañas, lagos, rocas cerros y cataratas. Los danzantes de tijeras que bailan luego de un entendimiento secreto con los Wamanis, bajo las cataratas o algunas cuevas sagradas transmiten la belleza de la música del agua que cae, la sangre de los cerros, que es vida esencia y fuerza”. (MONTOYA, 1990, p. 06).
Esta definição parece-se adequada, uma vez que nela não há uma marcação de gênero para os/as que a praticam. Questão que às vezes se encontra sinalizada em outras definições como a de Núñez Rebaza (1990):
Se sabe que la Danza de las Tijeras es una expresión mestiza que combina elementos de origen español con las raíces precolombinas. Es una danza de contrapunteo o desafío entre los bailarines y su música. Los danzantes son exclusivamente solistas, hombres y conforman, con un arpista, un violinista y un capataz, una cuadrilla. Solamente en Huancavelica, en las fiestas de Navidad y en la Adoración al Niño Jesús o en la Bajada de los Reyes intervienen las mujeres como seguidoras”. (NÚÑEZ REBAZA, 1990, p.14)
E na de Ulisses Juan Zevallos Aguilar (2009):
La danza de las tijeras (Danzaq en quéchua) es un baile masculino en el que dos bailarines, acompañados por sus respectivas orquestras compuestas de violín y arpa, danzan en turnos que forman parte de una competencia llamada Antipanakuy” (AGUILAR, 2009, p. 91).
Penso que a Danza de las Tijeras é uma prática artística e ritual dos sujeitos andinos, sem especificidades de gênero. Também prefiro pensar que, como uma dramaturgia ausente, possui uma estrutura dramático-narrativa muito complexa no que se refere à relação com a fé e com a manifestação da devoção aos Deuses tutelares. Esta narrativa, em cena, está presente nas sequências pela forma como nós, dançarinas, buscamos uma conexão com a Pachamama e com as três dimensões espaço-temporais Kay Pacha, Hanah Pacha e Ukuh Pacha, presentes na cosmogonia andina, através das Tonadas, dos Alto ensayos, dos Pampa ensayos. Também as Pruebas e a Pasta são sequências nas quais nós devemos demonstrar nosso valor e resistência física enfrentando distintos desafios.
Em meu processo de aprendizagem tanto no campo empírico observando a performance dos Danzaq e Warmi Danzaq, como na prática, durante a participação em oficinas, posso sinalizar que para dançar são necessárias a técnica e a fé, a prática e a devoção. É necessário cuidar do corpo, ser fiel às Tijeras e saber dialogar com a dança nos sonhos. A disciplina de treinamentos do Danzaq ou Warmi Danzaq é a base para sustentar uma presença equilibrada e harmônica, mas sua conexão com o Apu Wamani é sem dúvida a principal razão para que haja beleza e qualidade em sua dança.
Meu nome de Warmi Danzaq é Nina Sonqo de Ayacucho. Pode ser traduzido por “Coração Flamejante” ou “Coração de Fogo”. Meu maestro Qaqa Ñiti de Puquio me nomeou assim quando ao final do período de oficinas decidimos organizar meu Pachatinkay antes de voltar ao Brasil, então com seis meses de formação e aprendizagem básica da Danza de las Tijeras. O Pachatinkay é a consagração de um novo ou do primeiro vestuário de um Danzaq ou Warmi Danzaq. No meu caso, tratava-se de meu primeiro vestuário e a primeira vez que dancei com ele, feito para Nina Sonqo de Ayacucho.
Para a organização da cerimônia do Pachatinkay, escolhemos um lugar no qual foi possível realizar os procedimentos necessários para garantir a conexão com as energias dos Apus Wamanis, da Pachamama, do Sol e da Lua. Como discípula do maestro Qaqa Ñiti de Puquio participei do Ceremonial de Semana Santa (que se realiza nas quintas-feiras santas) organizado pela Asociación de los Danzantes de Tijeras y Músicos del Perú – ADATIM e que se realizou no Museo Pachacamaq Santuario Arqueológico. A partir de então, meu maestro sinalizava a necessidade de que a cerimônia do Pachatinkay pudesse se realizar em uma Huaca, de modo que, com a permissão da Diretoria do Museo de Sitio Huaca Huallamarca, o meu Pachatinkay pôde ser realizado na Huaca Huallamarca em 14 de julho de 2019, cerimônia a partir da qual pude, como Warmi Danzaq, dançar publicamente pela primeira vez com meu vestuário.
IV Despedida
Ao pensar no conceito de conduta restaurada ou comportamento restaurado, de Richard Schechner (2012), eu o associo a dois outros conceitos dele, “transporte” e “transformação”:
Los rituales liminales son transformaciones que cambian de manera permanente la identidad de la gente. Los rituales liminoides causan un cambio temporal – a veces nada más que una breve experiencia de comunitas espontánea o la representación durante varias horas de un papel -: son transporte. En un transporte, uno entra en la experiencia “conmovido” o tocado” (metáforas aptas) para luego ser soltado más o menos en el punto en que entró (SCHECHNER, 2012, p. 123).
Na prática da Danza de las Tijeras também estão os rituais que ocupam papéis importantes para os Danzaq ou Warmi Danzaq e um deles é o Pachatinkay. Refletindo em diálogo com a citação de Schechner, posso testemunhar que o Pachatinkay é um ritual de transferência e transporte e que os Danzaq ou Warmi Danzaq somos afetados pelas energias que nos conecta, através do vestuário, de seu contato com a terra e com o cosmos, com nossos Apus Wamanis, com a Pachamama. Além disso, recuperarmos e colocamos em cena um comportamento ancestral de resistência decolonial.
Finalizando a minha apresentação, a Warmi Danzaq Nina Sonqo de Ayacucho se despede do leitor sinalizando que, de modo geral, a imersão cultural a partir da aprendizagem e prática da Danza de las Tijeras foi algo muito positivo quanto às reflexões que tenho desenvolvido em diálogo com os sujeitos andinos em cena. A aquisição de um saber artístico, ritual e político, como é a Danza de las Tijeras, é algo transformador porque seu processo de aprendizagem e aquisição é atravessado por provas. No meu caso, como estrangeira no Peru, foram provas físicas e psicológicas as quais enfrentei de modo perseverante graças à força, ao encanto das Tijeras, quando as tocava e dançava.
Concluído o período de imersão pude entender que todos os desafios foram fundamentais para que meu corpo e corporalidade anterior, de pesquisadora que se colocava distante dos temas de estudos, para evitar a afetação, converterem-se em um corpo e uma corporalidade implicadas no tema da Danza de las Tijeras, como praticante, em diálogo com os sujeitos que a praticam e transmitem este saber. Neste testemunho a transmissão da aprendizagem se dá como forma de difundir a Danza de las Tijeras como um saber, um ritual, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, uma arte sofisticada carregada de sacralidade e devoção.
Imagem 03 – Pachatinkay de Nina Sonqo de Ayacucho.
Da esquerda para a direira: Asiri Sonqo de Ayacucho, Apu Misterio, Killary de Andamarca, Maestro Violinista: Felipe Llamoca, Maestro Arpista: Adito de Puquio, Wayrita de Huayana, Maestro Qaqa Ñiti de Puquio e Nina Sonqo de Ayacucho. Museo de Sitio Huaca Huallamarca. Lima, Peru. 14 de julho de 2019. Fotografia de Paula Virreira.
REFERÊNCIAS
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CAYO, Amiel. Willka Nina. El hijo del Wamani. Lima: Editorial San Marcos, 2015.
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Justicia entre Saberes: Epistemologías del Sur contra el epistemicidio. Madrid: Ediciones Morata, 2017.
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[1] Uma versão inicial deste texto foi apresentada como comunicação oral no III Congreso Internacional de Teorías, Critica e Historias Literarias Latinoamericanas – Antonio Cornejo Polar (CITCHLL) “Migraciones, Fronteras y Desplazamientos en las Literaturas Latinoamericanas”, realizado em Lima, de 06 a 09 de agosto de 2019 na Casa de la Literatura Peruana e organizado pelo Centro de Estudios Literarios Antonio Cornejo Polar. Sua versão em língua espanhola foi publicada em SOUZA, Carla Dameane Pereira de. Sujetos andinos en escena: teatro, performance y las dramaturgias ausentes. Cuaderno de trabajo n° 57. Lima: Departamento Académico de Ciencias Sociales, 2020. Disponível em:
<http://repositorio.pucp.edu.pe/index/handle/123456789/172097 >. Acesso em 12 de maio de 2022. ISBN: 978-612-48321-0-9.
[2] Procurei saber, mas desconheço a autoria da pintura. Por esta razão não pude apresentar os créditos.
[3] Cf. WATCHTEL, 1973: 108-109.