O AFOXÉ OJU OMIM OMOREWÁ, EUGENIO BARBA E ONDE ISSO TUDO PASSA A FAZER SENTIDO

Por Daniela Beny Polito Moraes
13/07/2022

Resumo: Este texto visa refletir sobre como e onde elementos teatrais se aproximam dentro das práticas artísticas do Afoxé Oju Omim Omorewá (Maceió/AL) de modo afetivo-acadêmico.

 

Uns meses atrás recebi o convite de Diogo Spinelli para escrever para esse número da Revista Farofa Crítica já que trata justamente sobre uma área do conhecimento que dialoga diretamente com o que venho pesquisando nos últimos anos. Convite aceito e desafio proposto a mim mesma, pensei em escrever um artigo bastante formal e quadradinho, depois pensei num texto mais poético, mas acabei optando por um punhado de impressões que, seja como artista ou como pesquisadora, vez ou outra passam pela minha cabeça, mas que, no final das contas, este texto vai sim parecer um artigo com a afetividade de um ensaio ou um ensaio com a “formalidade” de um artigo.

Em 2013 reiniciei minha trajetória acadêmica dentro de uma Especialização em Antropologia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) sem saber muito bem o que era Antropologia nem o quanto me seria cobrado como uma pessoa vinda do teatro que parecia ter caído ali de paraquedas – para alguns/as docentes inclusive eu nem deveria estar ali, mas isso é ponto de reflexão para outro momento – mas que, pela primeira vez num ambiente de educação formal me foi apresentada a possibilidade de trazer as culturas populares para importantes discussões dentro do campo da transmissão de conhecimento.

Pois bem, naquele momento resolvi investigar na periferia, mas não necessariamente uma periferia geográfica, se tratava de uma periferia epistêmica já que, além de vir do teatro resolvi abordar a dança do Orixá Iansã do Candomblé executada por um Afoxé pensada como um mecanismo de transmissão de saberes e fazeres. Hoje, 2022 temos um sem-fim de pessoas investigando temas parecidos, mas lá em 2013 me senti abrindo caminho com um facão numa mão e um livro na outra.

Ao meu lado, abrindo caminho estava/está o Afoxé Oju Omim Omorewá que está situado no bairro do Jacintinho, em Maceió/AL. Este bairro é um dos mais populosos da capital alagoana e possui altos índices de criminalidade, onde a maior parte da população exposta à violência é de jovens negros de baixa renda.  Sob a coordenação das Ialorixás Nany Moreno e Isabel Caetano, o Afoxé vem desenvolvendo suas atividades desde 2003. Embora o Omorewá não esteja vinculado oficialmente a nenhum terreiro, a maioria dos integrantes são iniciados no Candomblé ou na Umbanda, por esse motivo, parte dos percussionistas são ogãs[1] e algumas das dançarinas são ekedes[2], o que ao meu ver, caracteriza que as práticas artísticas oriundas das religiões de matrizes afro-brasileiras são sim um mecanismo de resistência e empoderamento do povo negro ao perceber que mesmo saindo do âmbito sagrado, os atores sociais desempenham papeis semelhantes quando relocados no campo artístico.

Imagem 01: Espetáculo Oju Omim

Fotografia de Iris Valões, 2013.

Antes de darmos continuidade é importante apresentar o conceito de Afoxé. Segundo o antropólogo Raul Lody (1976), o Afoxé é

(...) um cortejo de rua que tradicionalmente sai no carnaval (...) É importante observar nessa manifestação os aspectos místico, mágico e por conseguinte religioso. Apesar dos afoxés apresentarem-se aos olhos dos menos entendidos como um simples bloco carnavalesco, fundamentam-se os praticantes em preceitos religiosos ligados aos cultos dos orixás, motivo primeiro da existência e realização dos cortejos. Por isso, afoxé também é conhecido e chamado por Candomblé de Rua (...) Apesar de todas as modificações e desfigurações, esses grupos procuram manter valores e características de ‘africanidade’ como: cânticos em dialetos africanos (...) utilização de cores e símbolos que possuem significados específicos dentro dos preceitos religiosos dos terreiros de candomblé (Lody, 1976, p. 3)

 

Apesar do Omorewá não se furtar apenas às apresentações no período carnavalesco e realizar espetáculos num formato mais “teatral”, ainda assim optam por se nomearem como Afoxé dada a tradição e a mescla de linguagens que as práticas artísticas e litúrgicas afro-brasileiras permitem. É importante apontarmos que embora os espetáculos sejam categorizados como teatro ou dança ou música o Afoxé não se limita a isso. Como pesquisadora, diria que devemos categorizar o Afoxé como Afoxé, sem tentar limitar sua expressão apenas a uma linguagem artística, pois pensando nos aspectos dos usos do corpo dentro das religiões de matrizes africanas e considerando os elementos que se debruçam sobre a corporeidade do indivíduo e a capacidade de comunicação através das práticas artísticas de terreiros, trago aqui o termo “Cantar-dançar-batucar” proposto pelo filósofo do Congo Bunseki K. Kia Fu-Kiau, citado por Ligiéro (2011, p. 134) que indica que nas culturas com origem na região da África Subsaariana se adota esta expressão para evidenciar os elementos performativos de expressões artístico-culturais. O corpo-sujeito que toca, é o mesmo que dança e também canta sem uma linguagem ser colocada em destaque sobre a outra.

Feita essa explanação volto aqui a questão sobre como caminhos foram sendo abertos durante todos esses anos de pesquisa e como o Omorewá, Mãe Nany e Mãe Bel acabaram me mostrando mais sobre teatro do que muitas leituras feitas durante a graduação e posteriormente no mestrado e no doutorado.

Gosto sempre de contar essa história porque ela me faz pensar no quanto somos tentados à arrogância quando estamos dentro da academia. O ano era 2011, e eu me propus a morar durante os três meses do inverno no hemisfério sul em Buenos Aires para vivenciar intensamente um treinamento de Koshi[3] desenvolvido por Tadashi Suzuki e que naquele momento estava sendo aplicado pela atriz e diretora argentina Ana Wolf[4]. Deu-se então a confusão, pois ao mesmo tempo em que me sentia contemplada pelo treinamento, ficava muito inquieta pelo fato de ser uma técnica japonesa aplicada em uma atriz brasileira por uma argentina que havia passado anos num grupo de teatro da Dinamarca. Óbvio que isso não invalida o treinamento, nem esse nem nenhum outro, mas minha reflexão era: o que fazia parte da minha cultura ou das minhas raízes – mesmo que de modo ancestral - que poderia também vir a ser um “treinamento”?

Retornando à Maceió, fui convidada a trabalhar como assistente de produção dos shows do Omorewá e, posteriormente, me tornei iluminadora dos espetáculos teatrais do grupo, passando assim a acompanhar os ensaios mais de perto. Não que não conhecesse o repertório e as matrizes de onde o Omorewá se inspirava, mas passei a observar não apenas a obra pronta como também o processo de criação como um todo, desde a escolha e composição das músicas até a pesquisa e confecção de figurinos. Neste momento é justo onde ocorre o pulo do gato.

Depois de uma graduação inteira em licenciatura em teatro tentando entender o que eram os princípios que retornam tanto escritos e descritos por Barba, tão experimentados em várias oficinas e com uma distância absurda entre o que eu lia e o que eu entendia no meu corpo; assistir à Mãe Nany repassando uma coreografia de Iansã com as dançarinas do grupo me explicitou didaticamente o que era o tal do equilíbrio precário, dança das oposições, incoerência coerente, equivalência, omissão/absorção das ações e sats. Estava tudo ali, sem tirar nem pôr, mas estava orgânico, estava fazendo parte de uma narrativa ancestral que se materializava em forma de dança, que se corporificava e construía um sentido.

Eu, como umbandista que sou, consigo ali compreender o que não alcançava nos livros, não alcançava por não me identificar, por achar que meu corpo não cabia nesse formato de teatro ocidental europeu e que nós aqui no Brasil temos uma certa “mania” de copiar sem levar em consideração nossas particularidades – particularidades essas que passam inclusive pelos usos do corpo e da voz. Compreender o corpo como um lugar e não apenas um instrumento de trabalho, um lugar de construção e compartilhamento. O lugar onde de fatos habitamos e existimos como indivíduos, seja num aspecto social, cultural ou biológico.

Além de compreender os princípios que retornam, a convivência com o processo criativo de um Afoxé encabeçado por duas mães-de-santo me remete também ao quanto  categorizamos as artes dentro do espaço da academia. Ir à um Xirê – a festa pública do Candomblé que apresenta à comunidade os/as mais novos/as iniciados/as e seus Orixás e/ou às comemorações de aniversário de sacerdócio – é vivenciar o ritual de passagem daquelas pessoas, vivenciar compartilhando da festa, da música, da dança, da comida. É a experiência dos sentidos que vários encenadores/as ocidentais propõe em seus teatros como se fosse algo inédito, como se estivessem inventando a roda. A roda existe há séculos nos terreiros, nas aldeias, nas festas populares, mas que deixou de existir nos colocando sentados diante de um palco que ou mimetiza a realidade ou exacerba a fantasia.

Creio que temos muito a aprender com nossos/as mestres/as da cultura popular principalmente no senso de coletividade que se constrói dentro desses grupos, pois apesar das dificuldades financeiras, ainda assim, as coordenadoras do Omorewá mantêm atividades de atendimento à comunidade, promovendo periodicamente oficinas dentro do próprio grupo e/ou para quem tiver interesse em ingressar no Afoxé. Embora as oficinas não tenham um caráter técnico-profissionalizante – dadas as condições de manutenção do próprio grupo – tanto Mãe Nany quanto Mãe Bel se dividem na tarefa de ensinar atividades básicas dentro de segmentos profissionais afins ao próprio Afoxé e que possam gerar renda aos seus componentes. Para Mãe Bel

Grupo é assim, família é assim, a gente tem que ajudar um ao outro. A gente tem a preocupação de ensinar as pessoas a fazer as coisas, agora a gente tá montando figurinos, a gente ensina as meninas a costurar, já demos oficinas de colares pra cada uma fazer os seus adereções, já demos oficina de maquiagem, de cabelos[5]

 

E Mãe Nany complementa,

A gente ensina, chega junto quando a pessoa precisa, não é só o Omorewá Cultural, é o Omorewá social. Tudo que a gente tem do grupo é de doação, então serve para o grupo usar, pra consertar o próprio figurino, pra os meninos pegarem os instrumentos e dar oficina. A gente ensina tudo porque amanhã ou depois serve pra pessoa como trabalho mesmo[6]

 

Mesmo com essas entrevistas sendo realizadas em 2014, apesar de todo contexto pandêmico a configuração das atividades do Omorewá não sofreu tantas modificações, e neste momento inclusive Mãe Nany está estruturando seu próprio terreiro que, além de espaço religioso também abrigará as atividades do Afoxé e de outros grupos artísticos vinculados aos/às seus/suas filhos/as-de-santo indo na contramão de muitos grupos de teatro que sofreram brutamente com o impacto na cultura do atual governo perdendo assim suas sedes ou espaços de ensaio.

Encerro aqui essa “conversa” por escrito pensando em duas coisas que me são bastante significativas no momento: que nós artistas que já estivemos ou estamos dentro da academia possamos escutar mais os/as mestres/as da cultura popular, pais e mães-de-santo e nossos/as mais velhos/as de uma forma geral sem que necessariamente façamos isso para pôr em cena, mas para compreensão de mundo, para criação de repertório de vida. E a segunda coisa é que em escritos futuros tenhamos muito mais de Mãe Nany, Mãe Bel e outros/as tantos/as na mesma importância que em colocamos uma série de autores/as que lemos e que nem sempre entendemos nem dialogam com a nossa realidade, mas que são citados/as como a nossa principal base de conhecimento.

 

REFERÊNCIAS

 

BENY, Daniela. Os elementos de Iansã como possibilidade para a criação cênica, 190 p, Mestrado em Artes Cênicas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN, Natal, 2017.

 

CAETANO, Isabel. MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.)

 

LIGIERO, Zeca. Corpo a Corpo: Estudos das Performances Brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

 

LODY, Raul. Dicionário de Arte-Sacra e Técnicas Afro-Brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

 

 

[1] Correspondente masculino da função de ekede, normalmente dentro de um terreiro de Candomblé desempenha funções relacionadas ao toque para o Orixá (como percussionista), corte dos bichos para oferendas e outras atividades masculinas dentro das casas.

[2] É dela a função de zelar, acompanhar, dançar, cuidar das roupas e apetrechos do orixá da casa, além dos demais orixás, dos filhos e até mesmo dos visitantes. É uma espécie de "camareira" que atua sempre ao lado do orixá e que também cuida dos objetos pessoais do babalorixá ou ialorixá.

[3] Em japonês Koshi significa quadris, esse treinamento tem como base o bloqueio dos quadris para que se crie dois níveis diferentes de tensões no corpo, onde a parte inferior terá que se adaptar a esse bloqueio dos quadris buscando novas formas de deslocamento e a parte superior terá como função pressionar os quadris, fazendo com que o equilíbrio do/a artista da cena esteja fora do seu cotidiano.

[4] Ana Wolf foi atriz do Odin Teatrat nos anos 2000, onde foi dirigida diversas vezes pelos diretores do grupo, Eugenio Barba – diretor italiano – e Julia Varley – atriz e diretora inglesa.

[5] Entrevista cedida por CAETANO, Isabel. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.).

[6] Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.).

 

 

Foto do Banner: Íris Valões

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