Por Tadzio Veiga
06/06/2023
Tá pensando em realizar alguma passagem intensa por meio do seu corpo? Ou, melhor, o corpo se realizando plenamente seria a verdadeira passagem? Acho que sim. Acabei de esquecer o modo como “eu” ia realizar essa passagem. Não me interessa. Não me interessava também, deixou de me interessar no momento em que “eu” esqueci. Não sei nem dizer o que importa agora que “eu” finalmente declarei que isso (a minha passagem) já não me interessa. Na verdade, deve ter alguma outra coisa que contribua para as coisas, mas que agora não me vem à cabeça, e isso porque talvez não importe absolutamente nada que me venha à cabeça! Não porque “eu” não tenha relevância ou meus pensamentos sejam desprovidos de valor (qualquer valor, absolutamente qualquer valor), mas porque, na verdade, em algum momento específico (outro momento que não agora) deve ser importante, em algum determinado lugar (outro lugar) e para algumas pessoas (outras pessoas). Vamos supor então, agora, que isso não seja importante para “você”, e vamos na sequência, então, propor algumas outras coisas (não necessariamente novidades). Não que estejamos desesperades para que algo aconteça, embora, de fato, podemos alegremente dizer que estamos desesperades! Rapidamente, para que não haja confusões: não temos problema algum que algo aconteça (algo grande ou pequeno), só não estamos desesperades exatamente para que qualquer coisa ou algo tão específico aconteça. Complemento dizendo que não teríamos problema nenhum se este acontecimento fosse uma novidade (poderia até mesmo ser um conjunto de novidades, várias novidades, não teríamos problema também).
Vamos ao que interessa neste texto: se demorar dançando, experimentar algumas coisas com a matéria que temos, reconhecer os órgãos, duvidar da verossimilhança de corpos sem órgãos, fazer outras coisas com a matéria que não temos, empurrar a autodeterminação até o seu limite e se esforçar para não catequizar politicamente nenhuma dessas coisas.
Para fins quaisquer, “eu” separo o texto da seguinte forma, e nesta ordem: um primeiro pedaço que lida com a mudança do paradigma de corpo que propus como diretor do Teatro da Matilha no processo de criação do Foda-se eu (2023)[1]; um segundo pedaço que pode nos alertar da cumplicidade que sempre estamos a um escorregão de realizar - tornar o corpo sem órgãos um ídolo; um terceiro pedaço que busca expandir a coreografia desastrosa de autofodides, brincando de imaginar que seria possível ficar por ali para sempre.
“Eu” posso me dissolver!!! vs “Eu” me implico sem recompensa
Havia uma espécie de incômodo de minha parte nas últimas apresentações da Dissolução festiva[2], no fim de 2021. Meu incômodo não tinha a ver com uma insatisfação superficial ou com algum perfeccionismo que desejasse higienizar a cena. Acredito que era uma vontade de seguir a pesquisa que estava sendo elaborada, levando à sério algumas questões que poderiam parecer detalhes. Seguir efetivamente não poderia ser somente absorver prazerosamente o que nos atravessava e o que nós fazíamos.
A Dissolução partia de um agrupamento específico (a geração Z) e de um local específico (uma house party ou um fim de carnaval de rua na casa de alguém) para estruturar e ao mesmo tempo dissolver algumas unidades de sentido. Era um exercício de significações gratuitas, no melhor sentido, sob o recorte geracional e espacial citado. Havia corpo, sim, mas ele integrava a cena com todas as outras coisas, sem que fosse (ao menos primeiramente) o foco do trabalho. O principal era o espaço, o todo, a atmosfera, a ambientação… Algo assim. Algo como tudo por ali se dissolve, inclusive o corpo, que opera todas as dissoluções.
Após as apresentações pós-pandemia da Dissolução, “eu” escrevi um texto[3] que tratava do corpo, da dramaturgia e da encenação do trabalho. Curiosamente, foi ali que escrevi pela primeira vez a convocatória generalizada Foda-se eu. Não era ainda uma nova proposta de cena que estava anunciando (e que seria realizada um ano e alguns meses depois), ao menos não conscientemente.
A Dissolução carregava o princípio de um cansaço específico que se efetuaria plenamente no Foda-se. Mas este cansaço, quando efetivo, só podia se manifestar pela exaustão... E isso porque o princípio deste cansaço (presente na Dissolução) podia deixar que algumas pequenas cumplicidades escapassem. Seria importante então, injetar algum germe cristalino neste cansaço ainda inicial, tornando viável a proliferação de uma bactéria cristalizante, fazendo dessa cumplicidade, até então oculta por parecer orgânica (ou, insistindo em termos deleuzianos, por ser orgânica), um fenômeno transparente. Mediante essa cristalização, teríamos a cumplicidade bem diante de nossos olhos!
Mas o problema não estava em dissolver[4]. Esta é uma estratégia que ainda me interessa: ao invés de apontar o dedo para o nosso inimigo comum, derreter nossa certeza, nossa presença, nosso engajamento político. A questão que ainda fica sempre é se estamos, se estávamos e se estaremos fazendo isso. Talvez haja nas frestas da repetição do espetáculo, da cena, da performance e da coreografia a mais perigosa das representações: aquela que jura nada representar. Dissolver deveria ser autorreferencial, mas estava a um tropeço de também sofrer um decalque e justamente ser a imagem de uma dissolução, a representação do acontecimento de corpo que um dia já nos aconteceu (supondo que houve verdadeiramente dissolução em algum dia de nossas vidas).
Neste sentido, sobre a Dissolução festiva, deveríamos nos questionar se nos dissolvemos o suficiente, se “desfizemos suficientemente nosso eu” (DELEUZE, GUATTARI, 2012, p. 13) a ponto de não nos entregar ao empoderamento individual no primeiro deslize, no primeiro escorregão, no primeiro constrangimento. Este empoderamento (nada tem a ver com o uso do termo nas atuais movimentações políticas) é viabilizado por uma espécie de pose de dissolução, pose de dissolvido, e essa questão toda aparecerá novamente em breve, quando tratarei do corpo sem órgãos. A pergunta retórica seria: deixamos algo protegido? Seria ótimo se esta ocupação em dissolver e a atitude “tô nem aí” não deixassem de ser tudo que podiam para simplesmente se apresentarem como uma pose, um posicionamento e a respectiva (e óbvia) defesa individual deste posto… No pior dos casos, nos deparamos com uma nova manifestação do organismo que alega meramente desorganizar o corpo, a cena. Um organismo maquiado de dissolvido, que está muito confortável em desesperadamente tentar se confortar. O organismo vai até aí.
Seguindo tal pessimismo, teremos a hipótese de que este mecanismo de empoderamento individual não vai cessar nem mesmo quando entendermos a importância de dissolver, quando corporalmente lidarmos com a dissolução. Que besteira dizer que Narciso ficaria parado ali, e que não iria colecionar reflexos. Se o mecanismo não vai cessar, talvez haja algum trabalho estratégico e multidirecional que vai precisamente se entregar ao mecanismo, que vai desistir de desviá-lo ou de se declarar como fora do mecanismo.
Se antes dissolvíamos, agora o caminho é pelo avesso. Não vamos revidar, vamos revirar.
Há um uso dos termos “avesso”, “reversível” e “revirar” em um texto do filósofo David Lapoujade (2010) que tem grande importância daqui em diante. É um texto pequeno, que foi traduzido e publicado aqui no Brasil, e que serve de base para o livro “O Avesso do Niilismo” (2016) do também filósofo Peter Pál Pelbart. No texto, Lapoujade realiza uma reflexão acerca da política de informações, da linguagem, da amplitude dos sistemas na atualidade, tendo como articuladores desta reflexão apontamentos de Deleuze e Guattari sobre estes temas e conceitos deles. Aqui neste texto e na pesquisa que foi realizada para a criação de Foda-se eu, assim como no livro de Pelbart, o que tem grande relevância é a atribuição deste “avesso” para outros sistemas, compreendendo, se pudermos seguir nesse montante filosófico, que não se criam linhas de fuga de qualquer sistema ou das relações de poder sem ultrapassá-los, reconhecendo justamente que “ultrapassar não quer dizer sair” (LAPOUJADE, 2010, p. 165).
Para o duplo problema que se apresenta – se empoderar da dissolução como mais um atributo da individualidade e por definição representar o ato de dissolver – Lapoujade poderia ter nos dito que “não se trata de se opor à palavra de ordem, de se refugiar numa experiência limite que seria o silêncio, o grito ou a música; trata-se de percorrer a outra face da palavra de ordem” (LAPOUJADE, 2010, p. 165). Se pudermos considerar que a individualidade (e sua constante territorialização e reterritorialização das unidades que estão do lado de fora) está sempre trabalhando, e que momentâneas linhas de fuga poderão, devido à repetição, serem absorvidas, talvez haja uma importância em não se opor à individualidade... Ou melhor: há uma importância em não supor ser possível se opor à individualidade, pois ela tudo poderá reterritorializar.
Temos que ouvir Artaud para pensar na contradição que é precisamente lidar com a individualidade, tomar qualquer atitude sobre isso:
Mas de que eu dispunha
Para mudar minha vida?
EU
NADA, nada
(ARTAUD, 2022, p. 23).
Em Artaud, assim como em Hijikata Tatsumi, encontramos a importância de se realizar um segundo nascimento que, na verdade, seria o verdadeiro nascimento, para os partidários da versão de que a vida já nos foi raptada antes mesmo de sermos paridos.
Em suma, você nunca poderá começar nada. É sempre um outro que começa. Um outro que você ignora começa antes de você enquanto você não existe, ou quando você não sabe se algo começou. Você nunca poderá dominar o começo (UNO, 2017, p. 78).
No fundo, dissolver e “avessar” são as mesmas coisas, desde que haja verdadeiramente implicação. Logo, por Foda-se eu não se deve entender um trabalho que é contrário à implicação do artista que está em cena (a solução não parece ser o anonimato), mas sim que nele há uma tentativa de uma implicação menos protegida possível, retomando a implicação outrora perdida, como numa busca e exercício da vida, como gritava Artaud. Justamente por isso, a autodeterminação do corpo (em Foda-se eu) é a implicação que não se exerce por alguma declamação, demonstração e ilustração para o público a partir de qualquer síntese pessoal, mas sim pelo que imediatamente nos acontece. Ali, onde se está muito exausto para arrumar o cabelo, onde não se capricha no movimento seguinte por ter tropeçado no anterior, quando se está cansado demais para falar de si… Ali onde nenhum serviço significativo entrega ao público uma lição que ele deveria saber (talvez ele já saiba)... Ali onde nenhum agrupamento de jovens se engaja para barrar a passagem de um carro, mas onde serão todes atropelades, amistosamente.
Se implicar a ponto de não defender a própria implicação. Demorar implicando-se, e não se empoderando de tal ou para mostrar tal implicação. É este o sentido que a autodeterminação tem sido trabalhada por aqui, em comunhão com esse entendimento de avesso que se faz a partir do uso do termo por Lapoujade (2010) e Pelbart (2016).
Minha intuição para corpos sem órgãos só falha
Me parece que há sempre um devir-falador quando tratamos de conceitos específicos e do uso dos termos adjacentes relativos a tais conceitos. Há sempre uma versão nossa, que é uma versão falastrona, à espreita para afogar o nosso acontecimento de corpo para fins de comprovação da efetividade de um conceito no corpo. Contraditoriamente, a princípio, “eu” me demoro a seguir no conceito de corpo sem órgãos e suas possibilidades. Me proponho a sempre duvidar se já criamos algum.
Imaginemos tentar segurar a gema de um ovo, usando os dedos da mão como uma pinça. Provavelmente vai escorregar, deslizar pelos dedos… ou ainda, se a unha estiver grande e pontuda, você pode furar a gema, romper essa frágil fronteira, e a gema então vai se misturar com a clara do ovo. Mesmo assim, o corpo sem órgãos não é uma essência.
Dentre todas as dificuldades de criar um corpo sem órgãos, duas parecem válidas de serem citadas aqui, que surgem necessariamente depois da introdução do conceito: a primeira é a sensação de compreensão de sua especificidade, e a segunda é o desejo de “repetir” sua criação. Ainda que o vício não faça parte do corpo sem órgãos pleno (DELEUZE, GUATTARI, 2012), uma vez que se reconheça como um e se aproprie dessa atual e pré-individual natureza, seria possível para nossa tristeza manchar também este mapa? Em outras palavras, o estudo do povoamento do corpo e da obtenção de tudo que ele pode se tornará mais um estrato que é reterritorializado pelo organismo? O caso é parecido com o da pose de dissolução, mas o vacilo vem de outro lugar.
O estudo que vem sendo articulado aqui neste texto foi feito principalmente em salas de ensaio, mas houveram também encontros teóricos, além de conversas após os ensaios. Todes que implicaram seus corpos na cena de Foda-se eu compreendem, ao seu modo e desejo, o conceito de corpo sem órgãos em Artaud, Deleuze, Guattari e Uno.
Este acontecimento de corpo, ou conjunto de acontecimentos de corpo, foi cunhado por Antonin Artaud em 1947, em uma emissão radiofônica que só seria publicamente conhecida no ano seguinte. Artaud já havia evidenciado seu descontentamento com os órgãos anteriormente, em diversos textos, mas foi na emissão que ele os declarou guerra e acusou o juízo que impedia o corpo e a vida de serem tudo que podiam ser, o que potencialmente sempre foram. Décadas depois, o corpo sem órgãos torna-se um conceito fundamental e com protagonismo na filosofia e prática clínica espinosista de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que reconhecem em Artaud e em outros corpos plenos (que são citados em toda a obra) uma ampla resistência da subjetividade frente ao referencial psicanalítico freudiano, ao domínio de significações passíveis de representação e à constante recodificação capitalística. A proposta de Deleuze e Guattari nada teria de institucional ou de institucionalizante, por isso sua “consistência paradoxal de uma enunciação em ruptura” (SIBERTIN-BLANC, 2022, p. 13), que deve estar em constante operação sem se tornar um automatismo. Tal se torna o desafio de conversarmos sobre o que transversaliza a esquizoanálise.
Deleuze e Guattari também apostam em certa literalidade na obtenção deste corpo, que deveria então ser povoado de forças multidirecionais para exercer a vida em sua plenitude. Enquanto Artaud trouxe poucos indícios práticos e sistemáticos dessa busca (QUILICI, 2015), os filósofos sugerem os programas de criação (ou realização).
O corpo sem órgãos é a matéria desestratificada. A matéria que ainda não foi organizada de determinada forma, em que não há sedimentação e unificação (DELEUZE, GUATTARI, 2011). O corpo sem órgãos não foi distribuído de determinada forma, ele está antes da demarcação, do registro que ordena e serializa. Mas estar antes é também estar depois, uma vez que situações específicas seriam gatilhos para desorganizar os estratos e enfim refazer este status pré-distribuído (pós-distribuído). Esta é a importância do programa do corpo sem órgãos: fabricá-lo e fazer que passemos por ele (DELEUZE, GUATTARI, 2012).
Desorganizar uma ave até que ela “volte”[5] ao fluxo do dia que esteve dentro do ovo, onde os órgãos ainda estavam para serem demarcados. Desestratificar a Terra até que ela seja um grande átomo onde toda a erosão está por vir. Por “desorganizar” também podemos entender uma outra maneira de enxergar tudo que já está por aí.
Mas são coisas do corpo. Não são ideias posadas, povoar o corpo não é uma metáfora para nada. Quando Uno descreve como “banal” o corpo sem órgãos de Hijikata (UNO, 2018), ele está nos dizendo que esta realização acontecia de maneira palpável mediante uma investigação continuada de corpo, da pequenez dos movimentos, e com corpos que estariam à margem da territorialização do desejo e da vida que acontecia no Japão pós-guerra. Há uma importância na demora – de se demorar tanto por aqui, onde as coisas acontecem (ainda que de forma pequena), que uma hora, em meio a esta permanência que tornou cotidiana a corporeidade altamente exposta, que o corpo sem órgãos “simplesmente” acontece.
A banalidade e a demora no corpo não devem significar uma aversão à leitura e articulação dos termos, mas na verdade uma aceitação de que estes termos não estão em atividade no corpo ainda. Algo como “eu já sou um corpo sem órgãos” é tão perigoso quanto “eu posso compreender um corpo sem órgãos, determinar quando ele foi criado, quando ele aconteceu”. E sendo necessário, imaginemos o seguinte: corpos que agora fariam uma pose de corpo sem órgãos, e que ficam tornando essa pose um novo território, um novo lado certo da história a ser defendido e individualizado.
Dissecando o problema, que estamos brevemente imaginando, vamos supor que: 1) eu entendi o que é o corpo sem órgãos, conceitualmente, a partir das referências citadas; 2) eu tenho um desejo de realizar este corpo sem órgãos, de que o corpo sem órgãos seja parte integrante da minha realização cênica, coreográfica, performática e/ou de vida; 3) eu realizo um acontecimento de corpo que eu suponho (esta suposição pode ser baseada também em referências imagéticas ou descritivas) que tenha sido uma efetivação plena do corpo sem órgãos; 4) eu atribuo uma imagem ou algumas imagens ao meu corpo sem órgãos, a partir da lembrança do acontecimento que eu tive; 5) eu busco repetir a imagem que eu atribuo ao corpo sem órgãos; 6) eu passo a considerar o corpo sem órgãos algo que eu tenho, numa espécie de relação mútua de pertencimento (eu pertenço ao corpo sem órgãos e o corpo sem órgãos me pertence); 7) eu passo a olhar para o corpo sem órgãos como algo que é meu e que eu devo defender.
Há uma importância em duvidar do corpo sem órgãos exatamente enquanto se passeia por ele… e isso é martelá-lo um pouco. Tal qual a ultrapassagem que vimos em Lapoujade, “alguma coisa ultrapassa a dança, mas também zomba dessa ultrapassagem” (UNO, 2018, p. 74). Penso, em Matilha, que aí está uma possibilidade de experimentação do corpo, nessa oscilação “às avessas” entre preenchimento e esvaziamento do corpo involuído, em involução.
A pesquisadora Silvia Fernandes, na introdução da recente publicação de “Artaud le Momo” (2022), nos diz que “a poesia fecal, concreta e material, intensifica o corpo sem órgãos”. As fezes que comemos no nosso Foda-se expressam exatamente o estado de dúvida que estamos e devemos estar com relação aos nossos corpos sem órgãos.
Ficar meio por aqui
Matilha pode ser um agrupamento de cachorros, lobos, chacais, ratos e qualquer outro animal. Qualquer outra coisa na verdade. Um agrupamento de performers, de intérpretes… De pessoas que ficam meio por aqui… Precisamente: meio por aqui, nem tanto assim. Não ficam a ponto de este ser o seu território. Rapidamente se dissipam em direção a qualquer outra coisa. Nenhum espaço será definitivo por aqui, onde vamos meio ficar. O corpo sem órgãos não é clubber, por exemplo.
Este agrupamento que estou tratando não é um pequeno exército de seres uniformizados. São de guerra, talvez... E são tão complexos quanto esburacados, fissurados. A questão da Matilha é valorizar todas as oportunidades de agrupamento que se efetuam por qualquer outra coisa que não a ordenação por parentesco. E a matéria prima para isso – os ruídos – sempre estiveram aí, assim como potencialmente sempre estamos em matilha.
Favorecer os ruídos é a tarefa, se importar com as anomalias é a tarefa! Encontrar as anomalias, talvez até se debruçar ali... encaixar a cabeça dentro de alguma anomalia, relaxar um pouco. Mas isso não é acolhimento, é alguma outra coisa. Corpos contorcidos e apropriados de suas anomalias que também zombam do fato de que suas figuras podem ser interpretadas como ilustrações do corpo sem órgãos. Preferir o pé na nuca ao olho revirado, o arm swing e o waacking gratuitos à tremedeira hiperventilada.
E para isso a involução é pertinente, no sentido de não estarmos regredindo, mas sim por nos desfazermos (em todas as camadas que lembrarmos, sem parar) da ideia de evoluir (DELEUZE, GUATTARI, 2012), de progredir, de sofisticar. Formando blocos de dúvidas fundamentais, onde talvez realizemos alguma passagem. Uma Matilha em dúvida é uma Matilha duvidosa. Uma Matilha que abriu estranhos espaços no corpo, onde neles cabem pedaços de outros corpos.
Só o corpo sem órgãos que duvida se sua própria criação pode ser o verdadeiro fazedor do “teatro como repetição daquilo que não se repete”, onde a “repetição da diferença se repete indefinidamente” (DERRIDA, 2009, p. 364 e 365). Começamos por lembrar de duvidar… Depois nos propomos a ficar bastante tempo duvidando do corpo sem órgãos… E vamos diminuindo o intervalo entre os momentos de dúvida… Até só duvidar. Um estado de fundamentalmente dúvida, uma dúvida contínua sobre ter feito alguma passagem em algum momento. Para sempre.
Referências Bibliográficas
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Linguagem e Vida. Organização de J.Guinsburg, Sílvia Fernandes Telesi e Antonio Mercado Neto. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2014
______. Artaud, o momo. Tradução de Silvia Fernandes. São Paulo: n-1 edições, 2022.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2011.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2011.
______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2012.
______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2012.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2012.
KUNIICHI, Uno. Hijikata Tatsumi: pensar um corpo esgotado. Traduzido por Christine Greiner e Ernesto Filho. São Paulo: n-1 edições, 2018.
______. Artaud: pensamento e corpo. Traduzido por Christine Greiner e Ernesto Filho. São Paulo: n-1 edições, 2022.
LAPOUJADE, David. Deleuze: política e informação. In Cadernos de Subjetividade. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: PUC, 2010. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/cadernossubjetividade/issue/view/197.
PELBART, Peter Pal. O avesso no niilismo: cartografias do esgotamento. 2ª edição. São Paulo: n-1 edições, 2016.
QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: teatro e ritual. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.
______. O ator-performer e as poéticas das transformações de si. São Paulo: Annablume, 2015.
SIBERTIN-BLANC. Guillaume. Direito de sequência esquizoanalítica: contra-antropologia e descolonização do inconsciente. Tradução de Takashi Wakamatsu. São Paulo: n-1 edições, 2022.
VIRMAUX, Alain. Artaud e o teatro. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes Moura. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Notas de Rodapé
[1] Foda-se eu estreou em fevereiro de 2023, na sede do Grupo XIX de Teatro, em São Paulo (SP). O trabalho foi gerado em pesquisa intitulada “Avesso do Narciso”, iniciada em julho de 2022. O elenco é composto por Giorgia Cirenza, Giorgia Tolaini, Iacê Andrade, Mariê Olops, Rodrigo Lopes, Shico Menegat, Tadzio Veiga e ViniTheKid.
[2] Dissolução festiva: geração z estreou em setembro de 2019, no Instituto de Artes da UNESP em São Paulo (SP). Pouco antes da pandemia começar, no início de 2020, foi realizada também no Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo e só foi retomada no segundo semestre de 2021, quando a realizamos algumas vezes, em diferentes espaços.
[3] “O Corpo Dissolvido” foi publicado na 4ª edição da Revista LORCA, no início de 2021. A revista completa está disponível em: https://drive.google.com/file/d/1frLI5fN3hgcHQ_tVdGTC1T3D2mkhi-t6/view
[4] O emprego dos termos “dissolução” e “dissolver” tem como principal referência o livro Caosmose de Félix Guattari, que, embora não seja uma demora no presente texto, tem grande importância na criação da Dissolução festiva: geração z e no pensamento que envolve o Teatro da Matilha.
[5] Cometo este pecado deleuziano para contribuir com o entendimento do que é e pode ser um corpo sem órgãos, a partir de um exemplo, de uma metáfora. Num outro momento, mais rigoroso, me corrigiria com a seguinte citação: “O CsO [corpo sem órgãos] não existe ‘antes’ do organismo, ele é adjacente, e não para de se fazer” (DELEUZE, GUATTARI, 2012, p. 31).