TEATRO PARA CRIANÇAS NÃO É BRINCADEIRA

Por Denise da Luz e Max Reinert
06/06/2023

Resumo: O texto discorre sobre a trajetória da Téspis Cia. de Teatro, grupo sediado na cidade de Itajaí (SC), e discute sua visão sobre o teatro feito para crianças, tendo como ponto de partida um olhar para a dramaturgia e a direção, resgatando um lugar de respeito e destaque a produção para esta faixa etária, muitas vezes, desprestigiada.

Palavras-chaves: Teatro para Crianças; Teatro Catarinense; Dramaturgia Contemporânea para Crianças; Téspis Cia. de Teatro.

 

A Téspis Cia de Teatro, situada em Itajaí (SC), desde sua formação em 1993, tem se dedicado em cinquenta por cento das suas produções às montagens de espetáculos para as infâncias. A companhia vive profissionalmente de teatro e essa decisão inicialmente acabou se dando pelo fato destes espetáculos encontrarem normalmente mais possibilidades de circulação, contribuindo desta forma com a sobrevivência do coletivo. Mas, este não é o único motivo. Para além da máxima da “formação de plateia”, que supõe que as crianças que desenvolverem o hábito de assistir teatro serão consumidoras dele quando crescerem, nós acreditamos que este público merece ter acesso a obras que sejam pensadas e elaboradas com a mesma responsabilidade e profissionalismo das direcionadas aos adultos. Este é também o motivo pelo qual, ao falar de direção teatral, optamos por abordar reflexões relativas às montagens de nossos espetáculos para as infâncias, já que também trabalhamos na produção de peças para adultos. 

Em nossa percepção, por mais que já tenhamos tido avanços, percebemos que o teatro feito para crianças ainda é atualmente, em grande medida, marginalizado e visto como um teatro menor, no mal sentido da palavra. Identificamos isto ao olharmos para o espaço reduzido (muitas vezes, inexistente) que ele ocupa nas grades de programação dos “grandes festivais de teatro”, nas diferenças de cachês encontradas em algumas tabelas de sindicatos, onde desempenhando a mesma função, um profissional de teatro para crianças ganhará menos do que outro de teatro para adultos; na ausência em debates acerca de produção teatral, também em pesquisas e publicações acadêmicas, e até mesmo na produção de pensamento crítico. Evidentemente que reconhecemos algumas iniciativas criadas especialmente para promover e discutir a produção do teatro para infâncias, tanto através de festivais como na criação de organizações, mas sobre as quais não nos deteremos aqui, por não serem, estas, objetos de análise do presente texto.

Um dos cuidados que sempre procuramos tomar desde as nossas primeiras montagens, foi o fato de evitar tratar as crianças como seres incompletos, como “alguém que ainda virá a ser”. Além de respeitá-las como pessoas inteligentes, críticas e sensíveis que são, sempre nos preocupamos em levar espetáculos que se relacionem com as crianças de maneira horizontal e que não tenha a pretensão de lhes ensinar nada. No nosso ponto de vista este não é lugar nem a função do teatro, mas percebemos ainda essa abordagem em boa parte da produção de espetáculos, como se a fruição da obra artística por si só não fosse suficiente, tendo que ter alguma “utilidade a mais”, configurando desta forma peças didáticas e muitas vezes moralistas. 

No que tange aos procedimentos de criação e direção do espetáculo, inicialmente o que norteia nossas escolhas passa pela visão que temos das infâncias e do teatro que queremos e/ou devemos fazer para elas, como citado anteriormente. Costumamos trabalhar de maneira colaborativa, embora os/as diversos/as profissionais envolvidos/as assumam diferentes papéis dentro da produção. Diretor/a, atuadores/as, técnicos, criadores/as de trilha sonora, luz, figurinos, vídeos, cenários, dialogam durante todo o processo no intuito de gerar ferramentas para provocar o desenvolvimento da linguagem e ir estruturando um espetáculo que, aos poucos, vai criando contornos. 

Normalmente não partimos de um texto pronto em nossas montagens (o mesmo acontece nos espetáculos para adultos). Apesar de já termos feitos releituras de clássicos como Alice no País das Maravilhas e Alice através do Espelho de Lewis Carroll, além de O Patinho Feio (a versão mais conhecida é a de Hans Christian Andersen, porém a utilizada foi a versão dos narradores rústicos em idioma magiar por falusias mesélok para Clarissa Pinkola Estes, analisada no livro Mulheres que Correm com os Lobos); mas nesse caso os textos originais serviram apenas como disparadores para criar obras que tinham a intenção de serem singulares.

 

Imagem 01 – Espetáculo Um, dois, três: Alice!

Denise da Luz e Cidval Batista Jr. em cena, com imagens de Leandro de Maman.

Fotografia de Fernanda de Freitas.

 

Recentemente temos nos debruçado sobre narrativas cada vez menos lineares, no sentido de contar uma história com começo, meio e fim, dando preferência a explorar as possibilidades das dramaturgias do corpo na cena (na relação com o espaço cênico, com objetos, figurinos, trilha sonora, iluminação, projeção de vídeos); suprimindo inclusive nas últimas montagens, a utilização de palavras articuladas, utilizando apenas gromelô e onomatopeias. 

Outra questão é a “não criação de personagens” que seguem a cartilha do realismo psicológico, por exemplo. Os/as atuadores/as costumam se colocar em cena em primeira pessoa, assumindo diante da plateia que eles/as se encontram em situação de jogo, sem querer camuflar nada ou criar ilusões de serem outros. Os corpos vão se transformando e se relacionando com as situações criadas na cena à medida que vão sendo solicitados pela narrativa que está sendo criada. Quando acontecem transformações tanto de figurinos como de cenários e/ou outros elementos, elas normalmente são assumidas em cena e explicitadas como jogo ou recurso teatral, constituindo linguagem, sempre levando em consideração a presença da plateia. A feitura do teatro fica normalmente exposta, utilizando inclusive o operador técnico (de luz, som e vídeos) à vista do público.

 

Imagem 02 – Espetáculo Papelê – Uma Aventura de Papel

Denise de Luz em cena, com máscara criada coletivamente.

Fotografia de Max Reinert.

 

Papelê – Uma Aventura de Papel, nosso trabalho mais recente e que permanece no repertório da companhia, por exemplo, é um jogo aonde as atuadoras vão passando por várias brincadeiras e criando pequenas narrativas (sonoras e visuais) a partir de transformações do elemento e do conceito “papel”. Dessa forma, um pedaço de papel que inicialmente estava enrolado em um suporte, transforma-se em um boneco e as atuadoras vão criando à vista do público, inúmeras figuras que assumem “diferentes papéis” com diversas características e distintas funções dentro do jogo\narrativa.

Nossa dinâmica de trabalho tem procurado se alinhar cada vez mais de maneira horizontal, onde depois de lançarmos mão de algumas pesquisas relativas ao tema, texto ou ideia, a direção costuma, normalmente, lançar propostas para os/as atuadores/as criarem situações a partir de exercícios de improviso. 

Essas propostas tanto podem ser a criação de um comportamento físico, como na montagem de O Patinho Feio, o Gato Desgrenhado e as Galinhas Vesgas do Mundo; onde os/as atuadores começaram criando a maneira de se movimentar das “figuras-personagens” da narrativa ou com jogos rítmicos como em Um, dois, três: Alice!, onde os/as três atuadores/as se utilizavam de músicas e sonoridades para construírem a dinâmica rítmica de movimento da peça e dos cenários. Ou ainda a pesquisa de materiais como em Papelê – Uma Aventura de Papel, onde foram experimentadas as diversas possibilidades de criação com este material, desde a construção de bonecos até a de vestuários e cenários. 

O ritmo do processo é ditado pelos/as atuadores/as que elaboram propostas a partir das provocações, as quais recebem intervenções ou provocações do diretor, que no caso da nossa companhia é também o dramaturgo. À medida que acumulamos materiais, vamos construindo um esqueleto do que começa a constituir a estrutura dramatúrgica do espetáculo. Em seguida, e muitas vezes quase simultaneamente, cada novo elemento que entra modifica e se deixa modificar pelo já existente, criando através de uma proposta dialética, camadas de leituras para a obra.

É importante salientar que a lógica interna da criação se impõe à necessidade de fazer escolhas para a cena. Ao invés de nos ocuparmos, durante os ensaios, de tentar concretizar uma visão externa ao processo e nascida a priori, deixamos que as escolhas estéticas e poéticas sejam impulsionadas pela lógica interna de cada dramaturgia que está sendo construída colaborativamente; sempre respeitando o andamento de cada material que difere a cada montagem. Materiais diferentes requerem procedimentos específicos. Mas, isto é algo que, muitas vezes, só descobrimos dentro do próprio processo, entendendo que apesar da experiência acumulada em outras produções, a criação não se trata de uma reprodução em série ou de repetição de fórmulas. 

Outros elementos, como a trilha sonora, que, nas montagens dos últimos doze anos da companhia, tem sido criada de maneira determinante para a pesquisa de linguagem e de forma imprescindível para pontuar e co-criar situações, já que não temos utilizado palavras articuladas, pela parceira com a sound designer Hedra Rockenbach; além dos figurinos, iluminação, projeção de vídeo (em alguns casos), bonecos vão se somando e dialogando entre eles para finalmente chegar, após normalmente cerca de seis meses de processo,  em uma estrutura “definitiva” de encenação.

 

Imagem 03 – Espetáculo O Patinho Feio, o Gato Desgrenhado e as Galinhas Vesgas do Mundo

Denise da Luz, Mônica Torinelli e Fabrício Carvalho em cena.

Fotografia de Julian Cechinell.

 

A palavra “definitiva” aparece assim, entre aspas, porque outra fase do espetáculo é quando ele começa a se relacionar com a plateia. Temos procurado experimentar a realização de ensaios gerais, com a presença de crianças, no sentido de perceber sua recepção. Depois da estreia, seguimos nessa investigação, que na nossa maneira de ver é infinita, e sempre vamos fazendo pequenos ajustes necessários. De todo modo, mesmo que esses ajustes não aconteçam na peça que estamos apresentando naquele momento, levamos as questões que surgem na relação com o público para o processo da montagem seguinte.

Acreditamos que cada criança, assim como cada adulto, é única com suas subjetividades. Diante disso, procuramos observá-las e ouvi-las ao máximo, no intuito de criar possibilidades de diálogos. Estamos interessados em conhecer e partilhar como elas vivem, como pensam e como sentem influenciadas por seus contextos cotidianos. Para tanto, procuramos manter uma escuta sensível e atenta do discurso advindo da própria criança. Outra questão que levamos em conta fortemente é o fato de “ativar nossas crianças” dentro destes processos de criação. Pode parecer clichê, mas todos já fomos crianças, e a verdade é que a criança que fomos, continua fazendo parte do adulto que nos tornamos. Desta forma, para nós, é fundamental quando começamos a criar uma peça para infâncias, acessarmos nossos universos lúdicos, abrirmos espaço para imaginação, nos lançarmos ao chão (literalmente), ativarmos uma maneira de pensar que rompa com a lógica formal, agirmos com os ouvidos, com os olhos, com a pele, encurtarmos a distância entre o impulso e a ação. Mas ora, não é o mesmo que fazemos quando nos colocamos a criar um espetáculo para adultos? O que muda então? Nada! A isso queremos chegar! Talvez a escolha de um tema ou outro, e a maneira de explicitá-lo e aprofundá-lo que tenha mais relação com uma fase da vida e não com outra. Afinal, crianças e adultos convivem e compartilham do mesmo mundo. 

 

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