Por Thereza Helena
07/06/2023
Tenho uma lista com quatro perguntas que faria a Bob Wilson se ele respondesse meu comentário no Instagram. Duas delas são sobre as imagens em Einstein on the Beach[1], porque embora se trate de uma produção musical, são elas, as imagens, o que, a meu ver, existe de mais persistente na obra. E não é só pela permanência ou por terem resistido à distância temporal entre 1976 e 2022. Não. E sim, sobretudo, pela eloquência visual que possuem. Mais do que hora para entrar, para sair e um propósito nas cenas, elas têm um papel na peça. No elenco, junto ao corpo de baile e à orquestra, estão escaladas as imagens.
As formas, cores, texturas, elementos simbólicos e referenciais que estão em cena em Einstein on the Beach parecem ter passado pela audição nas toalhas de mesa do bar em soHo[2]. Foi lá que Bob e Glass compuseram parte da ópera. Eles se encontravam e enquanto discutiam, Bob ia desenhando suas propostas de composição visual para a obra na toalha da mesa mesmo, e apenas as imagens essenciais passaram pelo crivo e foram para a peça. Outro que fazia seus estudos em pedaços de guardanapo e toalhas de papel era Einstein. Se por coincidência, semelhança, inspiração ou método, não dá pra saber.
O fato é que se percebe na montagem, que Elas, as imagens, estavam metronomicamente partituradas e ensaiadas, se não tanto, mais do que os atores e músicos. Um virtuosismo que supera a estrutura da forma, da figura, abandona o caráter da ilustração ou decoração e lança as imagens em invenção, pra que mais do que cenário ou figurino, sejam um experimento que compõe múltiplos sentidos e contextos como se operassem - ainda que múticas, como diria Sylvain Maresca[3] - os atributos de personagens esféricas na montagem pós-dramática[4]. —Bob, would the images be the opera superstars?[5]
Para articular, planejar, construir sentido com elementos gráficos que discursam por quase cinco horas ininterruptas é preciso que haja um pensamento em torno das imagens e nesse pensamento, parece residir a tenacidade delas. Nisso, devo a Etienne Samain[6], o princípio do que se transformaria no interesse por saber como pensam aquelas imagens. O trem que atravessa o azul de um lado a outro do palco, a personagem de calça cáqui, camisa branca e suspensório ouvindo uma concha, a outra de jaqueta vermelha sinalizando pra alguém que não chega, o garoto de terninho investigando um cubo brilhante em suas mãos, o maquinista de barba rosa e cachimbo, o tribunal que se monta e remonta para dois julgamentos distintos, a mulher que vestida com seu colar de pérolas e casaco longo apanha uma carabina e mira na plateia, tudo isso acontecendo muito leeeeeeeeeeeeeennnnnnnnnnnnntaaaaaaaaaaaaammmeeeeeeeennnnteeeeeeeeeeeeeeeee.
É o nosso olhar para com as imagens que concebe o diálogo com Elas, e assim a consideração de que - embora não tenham consciência - tenham vida. Se é verdade, quando falamos com elas, falamos de nós também e, nesse caso, como ampliar o campo e fugir da repetição de nós mesmas? Se dá pra confiar que quando falamos delas, não é só delas que falamos, junto com a provocação de como pensam, surge outra: como pensa quem pensou aquelas imagens? Daqui parto para a segunda pergunta da lista. — Bob, would the play be a map of how to be oriented in the face of those images?[7]
O espetáculo não tenciona a forma do gênero dramático. Desse modo, não existe a necessidade de uma “história”, o que liberta a narrativa da lógica causal. Isso não significa que não haja texto. Há. O texto não só aparece, como é cantado, porém longe da colocação vocal operística e perto de estratégias de canto mais experimentais. Ele, entretanto, não se configura nem funciona de acordo com o sentido semântico convencional. É investigado enquanto um léxico distinto, como sonoridade, de modo que muitas vezes desintegradas, as palavras, frases e números são microcélulas que, junto com os demais elementos musicais, são talhados de forma escultórica na composição de Glass.
Em convergência com os interesses de Glass pela consideração de materiais sonoros não convencionais, havia uma especificidade nos gostos pessoais de Bob que atravessaram sua subjetividade particular e se transbordaram num convite. Bob apreciava os experimentos do jovem Christopher Knowles e sua relação com a rádio AM estadunidense[8], por isso o convidou para trabalharem juntos em Einstein. Knowles sabia de cor a programação, o nome dos artistas e seus hits, além da narração publicitária dos principais programas. Isso em virtude do seu interesse circunscrito- característico do espectro do autismo. Esse aspecto repetitivo, comum tanto à música minimalista, quanto ao autismo, em diálogo com a pop art, também aparecem na peça compondo a textura sonora onde números deslocam-se das contas matemáticas para ser em vez de contados, cantados.
Essa articulação de práticas distantes das convencionais em Einstein, talvez se deva ao fato de que no final da década de 1960, o mundo assistia a identificação que as vanguardas demonstravam para com as barreiras erguidas pela alta cultura separando os diferentes níveis artísticos[9] e Glass já investigava modos composicionais distintos da tradição ocidental (europeia). Ele, junto com La Monte Young, Steve Reinch e Terry Riley, foi um dos precursores do minimalismo musical.
A composição musical em Einstein é de Philip Glass e nos deixa ouvir inúmeras estratégias compositivas do minimalismo musical, como a repetição de células rítmicas com mínimas variações, que resulta em uma construção circular do tempo musical. Esse inclusive é o aspecto que em Einstein favorece a sensação de atemporalidade para a audiência, de modo que – além de não ser importante para a fruição da obra – pela música, não dá pra saber em que momento da peça se está.
Diferente da música operística do século anterior em que, para fisgar a atenção da plateia, o aspecto emotivo era sublinhado e seguia a narrativa junto com melodias e resoluções harmônicas, em Einstein, Glass cria na contramão desses preceitos e reitera o caráter musical menos dramático com a concepção de melodias e harmonias diatônicas com longa duração. A variação musical lenta, quase estática da música, reitera o interesse de Glass pela investigação da temporalidade dilatada.
As primeiras músicas minimalistas estavam abrindo mão da ideia de que o ouvinte de concerto devia necessariamente sentar-se frente ao palco e ali permanecer enquanto assistia, assim experimentavam-se apresentações que geralmente duravam uma noite toda e eram feitas em outros espaços que não os teatros[10]. Muito provavelmente vem daí o conforto e até mesmo o incentivo para que em Einstein a plateia se sentisse à vontade para sair e entrar quando quisesse durante a apresentação.
Einstein on the Beach, de Bob e Glass, não tem praia, a figura de Einstein aparece em cena sem nunca falar e a obra tampouco se parece com uma ópera convencional. Pra sê-lo, precisaria ter uma diva, uma narrativa consistente, uso de vozes na colocação operística e um libreto tradicional. Ademais, possivelmente Einstein seria o protagonista. Desde a estreia, a obra reposicionou muitas regras e práticas anteriores à sua produção. Com tantos elementos questionadores dos cânones — Why should it be called an opera?[11]
Uma vez que as turnês presenciais se concentraram pelo território estadunidense e Europa, não no Brasil, e antecederam meu nascimento, minha apreciação da obra se deu de modo digital e anacrônico, por meio de arquivos compartilhados no Vímeo e comentários deixados no perfil oficial de Bob, que muito certamente não é administrado por ele. Não consigo imaginá-lo rolando o feed por minutos a fio. Por fim, a última questão, como as outras e tal qual meu comentário abaixo do último post em sua página oficial, sem resposta
—Bob, is there anything that would make you restage Einstein on the beach in Brazil?[12]
Notas de Rodapé
[1] Einstein on the Beach é uma obra composta por Philip Glass (1937) e dirigida por Robert Wilson (1941). Constituída por um prólogo e quatro atos conectados por cinco knee plays, a montagem tem quase cinco horas de duração, nas quais o público geralmente pode entrar e sair livremente como parte da experiência. A produção, desde a estreia, em 1976, reposicionou as regras da ópera tradicional, do teatro, da música, da dança e da performance e, assim, abriu espaço para o caráter experimental nestes campos.
[2] CORREA, A. A estética do traje de cena de Robert Wilson em Einstein on the Beach (1976) e Shakespeare´s Sonnets (2009). Dissertação, Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 74. 2021.
[3] MARESCA, Sylvain. O silêncio das imagens. In. MARESCA. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.p.37-40.
[4] Embora o teatro pós-dramático considere o enfraquecimento da personagem em razão da crise do drama, com Danan é possível afirmar exatamente isso: o enfraquecimento da personagem, não a proibição de sua existência. DANAN, J.; D. MASSA, T. de C. A dramaturgia no tempo do pós-dramático. Cena, [S. l.], n. 29, p. 14–23, 2019.
[5] Bob, seriam as imagens, as grandes estrelas da peça?
[6] SAMAIN, Etienne. As imagens não são como bolas de sinuca. In. SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.p.21-p.36.
[7] Bob, você acredita que a peça é um mapa de como se orientar ante as imagens?
[8] FINK, Robert. Einstein on the Rádio. In. FINK. Einstein on the beach Opera beyond Drama. Park Square, Milton Park, NY: Routledge, 2019.p15-48.
[9] SANTOS, Rita de Cássia Domingues dos. Repensando a terceira fase composicional de Gilberto Mendes: o Pós-Minimalismo nos Mares do Sul. Curitiba: CRV, 2019. 352 p.
[10] SANTOS, Rita de Cássia Domingues dos. Repensando a terceira fase composicional de Gilberto Mendes: o Pós-Minimalismo nos Mares do Sul. Curitiba: CRV, 2019. p. 352
[11] Por que chamar a obra de ópera?
[12] Bob, existe algo que te faria remontar Einstein on the Beach no Brasil?
Assisti a essa obra operística através das aulas de dramaturgia da MT Escola de Teatro, tendo a alegria de ter a artista multifacetada Thereza Helena como professora. A leitura de sua crítica lançou luz, som e imagens sobre alguns pontos de dúvida e falta de compreensão mesmo, como, por exemplo, o tempo de duração da peça. Outra questão que me chama a atenção e torna a leitura mais fluida é a estrutura textual balizada por quatro perguntas feitas a Bob Wilson. Mesmo não havendo respostas, acredito que foram de suma importância para a gênese do texto. Sou um admirador da obra musical de Philip Glass e agora posso dizer o mesmo sobre BW: a passagem do trem é uma imagem que nunca hei de esquecer.