UMA RITUALÍSTICA DE EROTISMOS FEMININOS

Por Amanda Bixo
07/10/2024

Depois de assistir Graça: uma economia da encarnação, saí do teatro com uma sensação de estranhamento, mas não soube falar ainda sobre o que vi. Partindo desse princípio da inalcançabilidade das palavras para dizer o que percebi da obra, esse texto assume uma característica investigativa dos meus próprios sentidos.

Quando saímos de casa para assistir um espetáculo de dança é comum que esperemos por corpos em movimento, de preferência, em hiper movimento. Minha aposta é que trazemos esse costume dos princípios coloniais quando dançarinas, contorcionistas e cantoras de ópera eram os “bobos da corte” da aristocracia. Mas, o que encontramos, ao entrar no teatro para assistir Graça, são três mulheres (Ana Vieira, Jania Santos e Joselma Soares) em círculo, paradas e de olhos fechados, imersas em um grande espaço branco, com uma esfera lilás metalizada em uma das mãos e seus corpos pintados de vermelho e lilás em lugares específicos como tronco, extremidades e seios. De início me pareceram figuras familiares, só depois que me dei conta de que a imagem evoca As Cárites - ou As Graças - da mitologia grega, as dançarinas do Olimpo, as deusas da graciosidade. Essas figuras mitológicas já foram expressas em esculturas, pinturas e recriadas em vários tempos históricos, provocando perspectivas sobre os femininos. A partir desse ponto, entendo que a dança é a dança daquelas mulheres, dos seus corpos e das suas histórias.

Na primeira postura, elas permaneceram por vários minutos e parecia que esses minutos se multiplicavam no incômodo da imagem parada, a plateia ajustava inquietamente suas posturas nas cadeiras - eu me incluo nisso - porque a imagem parada é ainda um desafio para quem assiste dança, pois ela não entretém, pelo contrário, gera silêncio, propõe quietude e acerta nas inquietações de cada um. Talvez tenha a ver com o que Theodor Adorno fala no ensaio “Tempo Livre” (1969), quando sugere que a noção de tempo livre está inversamente ligada, ou presa, à noção neoliberal de trabalho, porque se torna o lugar onde precisamos nos abstrair completamente dele, para  compensá-lo. É preciso entreter o sofrimento, produzir diversão, pausar o trabalho, mas não o sujeito. Porque não haverá outro tempo. Pensando nisso, quando uma obra propõe a pausa - pausa mesmo, pura e simples - rompe com a imposição do tempo livre e se nega ao destino de ser entretenimento. 

 

Figura 01 - Graça: uma economia da encarnação.

Foto de Brunno Martins, 2022.

 

Somente da segunda vez que assisti a obra, agora em vídeo e com direito a closes, foi que notei os rostos das dançarinas, sérios, meditativos e sonolentos. A cena começa a se mover lenta e gradativamente em direção a ela mesma (em círculo), as dançarinas buscam tocar o corpo uma da outra, dançam passando suas esferas metalizadas uma para a outra, construindo uma espécie de ritualística marcada por repetições de ações, posturas,  gemidos, balbucios e pausas, nos apresentando sempre uma nova imagem. Aquelas bolas metalizadas são um motor importante do movimento, um objeto libidinoso em que o movimento se volta a. O atrito entre as bolas e as mulheres, e as mulheres entre elas, e as mulheres entre as bolas das outras, abrem uma zona erótica que se estabelece  durante todo o espetáculo. 

 

Figura 02 - Graça: uma economia da encarnação.

Foto de Brunno Martins, 2022.

 

As graças percorrem um caminho em direção ao gozo, mas me inquieta suas expressões faciais que contêm uma certa plasticidade, ou, como o próprio nome sugere, uma economia. Eu me questiono para qual sentido se aponta essa economia. Por que economizar? Aqueles rostos sérios são a expressão ou representação de um estado alterado de consciência? São um clichê da arte contemporânea? São um indício de uma arte plástica? Porque partindo do entendimento de que a principal fonte do nosso conhecimento erótico é a nossa própria prática sexual, na minha experiência cabem muitas sensações que extrapolam qualquer tipo de controle facial. Esses dias escutei de um colega que, segundo o pensamento de Georges Bataille, o erótico estaria no excesso. O que sobra, o que não cabe em. Eu gostei disso, é o tipo de coisa que não dá para entender direito, mas é exatamente assim que se sente e por isso faz todo sentido. Escorrega do controle, escorre, treme involuntariamente a pálpebra do olho esquerdo. 

Então, como mantém-se o rosto plástico enquanto são as histórias dessas mulheres que estão se movendo eroticamente, se não por um discurso a ser comunicado? Digo, algo está sendo dançado naquelas faces ou, caso contrário, estaríamos diante de um clichê contemporâneo. 

Observando os corpos femininos que dançam ali o que, por ora, eu vou chamar de uma ritualística erótica, me foi inevitável questionar quais histórias eróticas constituem aqueles corpos, e, quase como uma consequência, que histórias eróticas constituem o meu corpo e formam a carapuça de mulher que me veste. Aqui percebo que parte da minha observação da obra advém dessa lente espelhada por onde ela me atravessa.  No entanto, a plasticidade das faces, acumuladas às imagens apresentadas pelas posturas, podem ser lidas, quase com literalidade, se o olhar decidir interpretá-las. E nesse sentido, a obra despencaria. Ponho-me ao oposto e decido que o incômodo com as expressões faciais, o porquê da economia, as imagens que me ativam, são as movências das minhas histórias que entraram na dança. 

Me pego dissolvida. 

A dança se intensifica a cada ação e essa intensificação vira os balbucios em frases gritadas, quicadas das bolas no chão e depois em quicadas das Graças na bolas, entre as frases e os gemidos, elas quicam ferozmente em suas esferas-motor-desejo, em uma espécie de tesoura tripla - umas entre as pernas das outras - para quicar em todas as esferas ao mesmo tempo: é uma transa. Entre femininos, umas entre as outras, de si para si, quase, ouso dizer, como uma masturbação a trois. Curiosa, eu quis saber o que elas diziam naquelas frases, ainda inquieta com o sentido da economia da carne, porque o máximo que se entende são pedaços de palavras. Então, perguntei o que elas diziam a uma das dançarinas da obra, Ana Vieira, e ela me respondeu que “Não importa o que dizíamos, importa que tínhamos algo para dizer”. Não enxergo outra maneira de experienciar Graça que não seja erótica, como bem coloca Susan Sontag quando recusa uma relação de interpretação da arte e defende a sua sensualidade em “Contra a Interpretação” (1966). Poros abertos à sedução pelo que se apresenta diante de você. Assim, não há entremeios para justificar isso ou aquilo dos significados de uma obra; pois é o que toca, o que chega pelos sentidos que interessa. E no caso de Graça, é também mistério. 

Ao evocar a figura mitológica das graças e a ideia de encarnação juntas, a peça cria um jogo de tensão simbólica entre o profano e o sagrado; um jogo que se movimenta na mistura dessas tensões - o sagrado e o profano parecem ser, mais ou menos, uma mesma operação. Essa tensão simbólica está nos fundamentos epistemológicos do Ocidente, como tantas outras binariedades; vários discursos já foram ditos a partir disso; músicas, frases virais na internet, narrativas feministas, artes visuais, performances, muita coisa já foi feita na insistência de borrar essa fronteira entre sagrado e profano que assombra a existência dos femininos. Ao mesmo tempo, não enxerguei nenhuma dessas simbologias quando assisti a obra, somente quando pesquisei um pouco mais sobre ela,  e penso que a nebulosidade salva a sua sensualidade, uma vez que evita a linha reta das imagens aos discursos.  

Na insistência de perceber a visualidade de Graça, que se mostra minuciosamente harmônica, vejo um conjunto de característica que confluem em uma estética minimalista ocidentalizada: as cárites, as posturas-imagens, o grande espaço branco onde tudo acontece, as pinturas, a coreografia, inclusive retomando o problema das expressões faciais e a própria economia da encarnação. A sensação é a de estar olhando uma escultura dançar, utilizando-se de suas materialidades para transformar a si mesma. Eu poderia observar esse trabalho como uma arte plástica, pois de acordo com o Chat GPT (rs), tradicionalmente as artes plásticas enfatizam a materialidade e o processo de moldar ou dar forma a um material. Claro que o meu olhar pede uma licença poética e parte mais de um delírio semântico do que de uma constatação certa de alguma coisa. Então eu olho para as pinturas-figurino e penso que talvez não haja uma relação mais do que ilustrativa nelas; mas, é interessante observar como elas se desgastam, desmancham, derretem e se dissolvem nas dançarinas em movimento. E não seria esse o efeito da prática sexual no corpo? 

Depois das quicadas ferozes, as dançarinas deformam a cena, saem do círculo de repetições de posturas-imagens - o único momento de toda a dança em que aquele formato inicial se espalha - enquanto levam suas esferas-motor-desejo em direção a boca e as sugam. As bolas secam lentamente e um líquido branco transborda de suas bocas: é leite. E elas bebem desesperadamente, famintas, e riem e vibram e tombam no chão e escorregam e cospem e se lambuzam e se embriagam e o leite escorre pelos seus corpos e mistura ainda mais suas matérias, a cena explode em um orgasmo! 

As graças se alimentam do objeto da libido; o objeto da libido é o alimento-corpo alquimizado para alimentar o outro; o outro é elas mesmas; as graças se empanzinam de suas histórias eróticas, se embriagam dos fluídos de seus corpos e gozam pra caramba. Enfim preciso fazer uso das palavras de descontrole para dizer do que vi: escorrer, escorregar, tremer; o clímax escorregou das minhas expectativas na cena molhada; assim é o gozo, mesmo que precedido, extrapola. Esses dias eu li sobre o poder do compartilhamento do gozo em “Os usos do erótico: o erótico como poder” (1978), de Audre Lorde, e a possibilidade da intimidade nesse movimento, da construção de pontes no abismo entre eu e, nesse caso, ela. Penso que foi isso que vi se manifestar na dança daquelas mulheres, gozando juntas camadas e camadas de histórias, e mais do que pontes, desmanchando abismos. 

 

Figura 03 - Graça: uma economia da encarnação.

Foto de Brunno Martins, 2022.

 

No mesmo texto e recentemente pensando com outras pessoas o que seria o erótico, me dei conta de como é difícil dizer dessa zona que fundamenta a existência humana, porque é uma zona de múltiplas operações em múltiplas experiências de corpo que se cruzam nos contextos vividos e acontecem nesse cruzamento.  A questão é que são eróticas, assim como são femininos. Nesse sentido, Graça ritualiza erotismos femininos na medida em que três mulheres dançam em direção ao gozo de si mesmas. 

Meu desejo não é concluir alguma coisa para tentar finalizar esse texto, já que estou aqui para investigar os meus sentidos diante da obra e, sobretudo, elaborar um pensamento que se cria na insistência de uma postura erótica para observar erotismo, engolindo a própria cauda (ouroboros); mas posso sugerir que se repare no “quase”, nas conjunções adversativas, nos futuros do pretérito dessa escrita, nas vírgulas que separam as possibilidades de dizer uma mesma coisa; lá estão as sobras, as fragilidades de um olhar que espasma e permanece olhando. Também são as frestas por onde é possível escapar e perceber o que mais se queira. 

 

FICHA TÉCNICA

Concepção e coreografia: Elisabete Finger;
Em colaboração comAlexandre Américo, Ana Vieira, Jânia Santos e Joselma Soares;
PerformanceAna Vieira, Jânia Santos e Joselma Soares;
PinturasElisabete Finger, Ana Vieira e Samuel Oliveira;
Direção artísticaAlexandre Américo;
Assistência de direção: Ana Vieira;
Produção artística e executivaCelso Filho;
Desenho de Luz: Camila Tiago;
Fotografia de divulgaçãoBrunno Martins, Guesc e Debby Gram;
Design gráfico: Vinicius Dantas (AYA+);
ColagemManuela Eichner;
Pintura corporal (execução): Álvaro Dantas;
Residências ArtísticasEspaço Giradança (Natal/BR) e Casa Líquida (São Paulo/BR);
ProduçãoListo! Produções Artísticas | Corpo Rastreado;
Direção financeiraCecília Amara;
Direção Espaço GiradançaRoberto Morais.

 

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