Por Lanuk Nagibson
07/10/2024
A peça Jacy, criada pelo grupo de teatro potiguar Carmin, estreou em em 31 de agosto de 2013, contudo só a assisti em 2020, através de uma adaptação para o formato virtual no canal do Sesc, via Youtube. Foi uma experiência de deslumbramento ver os entrelaçamentos criados pela narrativa, além da qualidade técnica da companhia teatral. Ali, sentado em frente ao notebook, assisti a uma narrativa contada por Quitéria Kelly, em seu apartamento no Rio de Janeiro, e Henrique Fontes, na sua residência em Natal; o que vi não era apenas sobre Jacy, mas era, e ainda é, sobre a cidade de Natal.
No palco, é posto em foco um recorte da burguesia potiguar que habitou nossas ruas durante o século XX. Ao trazer para a cena avenidas e bairros ordinariamente presentes na vida de uma parcela da sociedade natalense, o Grupo Carmin põe a cidade em visibilidade e promove uma representatividade de pessoas que não são comumente vistas nem nas artes dramáticas e nem na cena audiovisual que é consumida de maneira massiva; e, quando essa representatividade acontece, faz-se de modo estereotipado.
Sendo assim, o Grupo Carmin apresenta ao seu público uma natalense, interpretada em cena por outros artistas de Natal que aproveitam a narrativa para contar um pouco sobre a história da cidade. Esse jogo finda por construir uma fabulação que tem se tornado atemporal, pois os fatos apresentados e trazidos por Jacy já estão há onze anos no palco e continuam contemporâneos. Vale destacar que um ponto alto da encenação é quando os autores começam a explicar a genealogia política do Rio Grande do Norte, comprovando que as críticas sobre Natal, feitas anos atrás, ainda são válidas; e que os problemas sociais presentes há décadas ainda habitam as ruas e as calçadas da capital.
Virtual ou presencialmente, os atores começam falando que a história era real, porém os nomes ficcionais. Mas, àquela altura, esse dado não mais me importava, pois o que eu queria era saber sobre aquela mulher, aquela cidade e aqueles amores, independente da veracidade dos fatos. Pelo Youtube, o que se exibiu foi um fragmento ou uma adaptação da peça, que foi nomeada como A Frasqueira de Jacy, trazendo foco ao objeto que pertencia àquela senhora. Só tive a oportunidade de ver a peça, presencialmente, pouco mais de um ano depois, em um sábado à noite, na Casa da Ribeira, em Natal. Foi uma experiência completamente diferente. O que assisti continha outra dramaturgia.
Se um verbo é o indicativo de uma ação, a frasqueira é um rastro, uma memória ou um cheiro de sua dona e não ela mesma; por isso, no teatro, exibe-se o verbo encarnado: Jacy. A frasqueira está ali como um objeto de estudo, uma gênese de onde tudo começou, um ponto de partida, um big bang que deu origem àquela dramaturgia. Presencialmente, a peça não é sobre a frasqueira, é única e exclusivamente sobre Jacy. A dramaturgia é impecavelmente assinada por Henrique Fontes e Pablo Capistrano, no entanto, é com a poesia de Iracema Macedo que se elucida e nasce o encantamento que irá costurar poeticamente as cenas. “Parece que começou de repente. Primeiro o nariz, depois os olhos, a pele toda até… chegar aos cabelos. [...] De uma hora para outra, eu parei de me olhar no espelho. Perdi a vontade de me enxergar. Não era eu” (Capistrano, Fontes, Macedo, 2017, p. 37).
E é investigando o rosto no espelho que a atriz Quitéria Kelly apresenta ao público uma primeira versão de Jacy, pensada e escrita por Iracema. Aqui, a poeta constrói um relato da velhice que transmite um ar de uma naturalidade inesperada, um fato que a todos chegará, mas que ninguém o espera ou deseja. Sutilmente, revela-se a primeira pauta que será levantada na narrativa: o etarismo. Investigando a solidão que assola a vida de diversos idosos e a inutilização social a qual essa parcela da sociedade sofre pela falta de políticas públicas, o Grupo Carmin olhará e dirá, de modo não panfletário: eles existem, estão aqui e merecem nossa atenção.
No decorrer das cenas, diversos jargões e frases de efeito são lançadas sobre o público com o intuito de prender a atenção da plateia, provocar o riso e — acima de tudo — despertar reflexões sobre as problemáticas sociais que assolam a capital potiguar. Quando aparece uma crítica desse cunho em cena, um dos atores repete a frase: “ainda bem que mudou, né?”, quase todos riem e depois se segue um silêncio ensurdecedor. Quebrar a quarta parede é algo que, em Jacy, acontece com frequência, buscando aproximar o público e segurá-los ali. Afinal, essa peça fala sobre algo muito específico: a vida de uma cidadã que poderia ser a avó de muitas pessoas sentadas ali. Apesar desses rompimentos constantes, em nenhum momento, torna-se enfadonho ou cansativo, porque se compõe uma sensação de proximidade, é como se estivesse sendo contada a história de alguém muito próximo.
Mesmo possuindo diversos pontos cômicos e irônicos, é por revelar o poético em coisas rotineiras e fatídicas que a dramaturgia ganha força, pois sua essência parece evidenciar a vida como ela é. Jacy é uma peça documental, e como um teatro do real elabora uma ênfase na realidade em si, embora não haja a intencionalidade de reproduzir uma atuação realista. O que se vê em cena são dois atores contando uma história tendo como ponto de partida a investigação de uma frasqueira encontrada no lixo. Em diversos momentos, as atuações são propositalmente caricatas, a fim de demonstrar ao público que eles não estão preocupados em imitar perfeitamente a voz e os jeitos de Jacy, nem dos seus parentes ou do comandante Harry.
Ao entrar em cena, Quitéria anuncia: “O que vocês estão prestes a ver é a verdade. Os nomes foram trocados, mas a vida é de verdade” (Capistrano, Fontes, Macedo, 2017, p. 35), e Henrique prossegue dizendo, “Uma manhã de março de 2010. [...] no bairro do Tirol, em Natal, [...] Avenida Prudente de Morais [...]” (Capistrano, Fontes, Macedo, 2017, p. 35); com isso, o Grupo Carmin faz questão de situar historicamente e geograficamente o espaço representado pela dramaturgia. A partir disso, ambos seguem contextualizando o público acerca do processo de criação do espetáculo, até que a cena finaliza com Quitéria reafirmando que “O que vocês estão prestes a ver não é a verdade. Esta é uma obra de ficção que só revela o que pode revelar. Os nomes foram trocados, mas a vida, esta vida, é de verdade” (Capistrano, Fontes, Macedo, 2017, p. 37).
Como um balanço que vai e vem, ora os atores interagem diretamente com o público falando em primeira pessoa e fora do personagem, ora interagem apenas entre eles representando a dona da frasqueira e as pessoas de sua convivência, transitando entre o modelo épico, ou narrativo, e o modelo dramático de atuação. Esse movimento traz à obra um sentimento cíclico. A cena começa e termina em Quitéria. A peça começa e termina em Jacy. Jacy nasce e morre no Rio Grande do Norte. O Rio Grande do Norte entra e sai da Segunda Guerra Mundial. A Segunda Guerra Mundial traz novidades à Natal, uma cidade pacata; mas, também leva consigo o coração das jovens natalenses que se apaixonaram pelos soldados estadunidenses, assim como Jacy.
Boa parte das cenas tem um começo, um meio e um fim, muito bem marcados. De modo orgânico, os atores vão conduzindo os fatos com leveza, humor e sarcasmo, entretanto não esquecem a seriedade e a poeticidade da peça apresentada. Em um constante movimento de idas e vindas, Jacy aparece idosa, jovem e algumas vezes não aparece, são os atores que falam por si. Apesar de parecer ilógico, três camadas narrativas vão se formando e, em um determinado momento, elas se encontram. Nesse ponto, o público compreende que a história de Jacy é a história de Natal e a história de Natal é a história de Jacy. Jacy é uma metáfora de Natal, “Jacy era igualzinha a Natal: uma donzela que sonhava com um príncipe que vinha de longe, e que a revelasse ao mundo. Ainda bem que mudou, né?” (Capistrano, Fontes, Macedo, 2017, p. 44). Essa Natal que se metaforizou em Jacy foi uma cidade deslumbrada com a guerra e a presença dos norte-americanos em suas ruas, afinal “Foi na guerra que Jacy conheceu o amor” (Capistrano, Fontes, Macedo, 2017, p. 44).
Ao situar o público em um momento tão importante para a história mundial, como a Segunda Guerra, o grupo problematiza a construção histórico-social da sociedade natalense ao denunciar a falta de assistencialismo com parte da população que migrava dos interiores rumo à capital em busca de trabalho e melhores condições de vida:
“[...] a classe média se divertia nos bailes do Aeroclube, mas o povão que vinha do interior tinha outro destino. [...] Muitos trabalhavam em navios-frigoríficos, descarregando carne que vinha da América do Norte. Eles se revezavam de três em três minutos para não morrerem de frio”
(Capistrano, Fontes, Macedo, 2017, p. 45).
Nesse momento, é possível se refletir sobre como Natal, historicamente, se fez de boa anfitriã aos estrangeiros, porém não prestou assistencialismo aos de casa e, de modo pontual e conciso, o Grupo Camin faz uma crítica assertiva de como essa presença estrangeira se manifesta nos hábitos de Natal.
“[...] a Segunda Guerra Mundial acabou. O capitão Harry foi embora e Jacy ficou. Os americanos foram embora e Natal ficou” (Capistrano, Fontes, Macedo, 2017, p. 46), nesse trecho, brutalmente é anunciado o distanciamento geográfico que sofre Jacy e seu grande amor Harry, assim como se é revelado o abandono de Natal por parte dos americanos e a vida na fazenda iluminada — como a cidade é chamada em parte da dramaturgia — volta a sua normalidade, assim como Jacy, uma jovem natalense de classe média alta que precisa dar prosseguimento à sua vida. Natal seguiu, Jacy seguiu. Sem festas, bailes ou cinemas, Jacy só trabalhava.
Outro ponto que merece destaque é a visualidade cênica, que é dinamizada a todo momento sem nenhuma magia e perante o público. Executando diversos equipamentos, os contrarregras desenham e operam multimídias que interagem com os atores. Percebe-se que é intencional mostrar aos espectadores como os maquinários cênicos são utilizados e, apesar disso, em nenhum momento essa interação extra rouba a cena ou tira o foco dos atores e do texto. Tudo é feito com muita discrição e de um modo que a atenção dos que assistem à apresentação continue sempre voltada para a vida de Jacy.
Tendo em vista que Jacy é uma obra poética, a poesia vai se fazendo presente em cada detalhe posto ou não em cena. São minúcias que compõem a peça e vão costurando a narrativa como uma grande colcha de retalhos. Fragmentos de uma vida aos pedaços e reunidas por um propósito: viver intensamente. Essa fragmentação poética da vida é posta no palco através do cenário construído pelo grupo: simples, minimalista, sutil e vazio. Sim, o cenário de Jacy é composto pelo vazio de um fundo falso preto — e percebe-se que o grupo teatral quer que o público tenha noção de que o fundo não é verdadeiro —, oito lâmpadas penduradas, uma mesinha cheia de “parafernália tecnológica” e, no início da peça, duas cadeiras — trazidas pelos atores — que são colocadas à vista do público.
Para muitos, uma peça com umas pitadas de realismo e que possui um cenário como o presente na peça, poderia ser vista como uma obra com uma cenografia fragilizada. Entretanto, entende-se que não se trata de uma cenografia construída por gambiarras pois encontra-se uma intencionalidade nos elementos postos e no minimalismo proposto. Ao optar por um fundo falso, além de o utilizarem como um instrumento de projeção para cenas que ocorrem atrás dele, consigo enxergá-lo como uma metáfora da própria vida. São fragmentos de uma história que juntos se tornam uma coisa só: a memória. Em determinados momentos é um álbum de fotos, em outros uma lousa, às vezes um espelho, podendo ser também o mesmo espelho para o qual Jacy se olha e apenas por meio dele o público consiga enxergar o que passa no coração dessa mulher.
Com um tom paradoxalmente rústico e moderno, as oito lâmpadas penduradas também são metáforas, elas representam as décadas que Jacy viveu. À medida que os anos vão passando, os atores as apagam ao ponto de, em sua morte, a última lâmpada ser desligada. Nesse gesto silencioso, o Grupo Carmin coloca no palco uma temática ainda obscura para muitos: a morte. Com leveza, o grupo fala desse assunto que ainda dói e assusta a humanidade, mostrando que, sim, é possível abordar temas complexos sem violência, e sem uma abordagem caricata ou esdrúxula. Não foi preciso sangue, agressividade ou mesmo a palavra “morte”. Apenas um toque, o escuro e o não dito. O verbo se fazendo carne, e o silêncio se tornando o alimento poético aos corações calados e habitados pelo vazio que só a morte oferece. Todos esses recursos são usados em cena de modo singelo e representativo.
Sem prejudicar o conteúdo da dramaturgia, os elementos tecnológicos se somam às cenas, complementando e materializando algo que é quase intangível: a lembrança de quem foi Jacy, a lembrança das memórias apagadas de Natal. Levando em consideração que a cidade em que se passa a peça possui um sério problema de memoricídio, o Grupo Carmin faz questão de materializar essas memórias em cena como uma forma de resistência e resgate da história natalense, utilizando a vida de Jacy como um instrumento.
Por fim, é importante ressaltar que a peça Jacy circula a mais de uma década, já compôs o Palco Giratório do Sesc em 2016, percorrendo dezoito estados, em cinquenta e cinco cidades brasileiras, e também foi apresentada nas cidades de Coimbra e em Aveiro, em Portugal, no ano de 2022. E ainda segue resistindo, sendo ecoada em diversas regiões do país e do mundo como um testemunho, um testamento e uma denúncia. O grupo faz questão de honrar a memória dessa mulher que ocupou as ruas de Natal e do Rio Janeiro durante a sua existência e faz isso de modo muito bonito. Além de, por meio dessa narrativa, convidar o público a olhar para pontos tão sensíveis e presentes na vida cotidiana. Parafraseando Quitéria, ao final de suas apresentações da peça, digo: “Jacy, onde quer que estejas, esta crítica é dedicada a você”.
Referências
Capistrano, P. Fontes, H. Macedo, I. Jacy. In: Bailey, J. E. Capistrano, P. Fontes, H. Macedo, I. (2017). Década Carmin. Natal: Fortunella Casa Editrice.
FICHA TÉCNICA
ELENCO: Quitéria Kelly, Henrique Fontes, Pedro Fiuza.
DRAMATURGIA: Iracema Macedo, Henrique Fontes e Pablo Capistrano
DIREÇÃO: Henrique Fontes
PRODUÇÃO GERAL: Quitéria Kelly
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Daniel Torres (2013-2015); Mariana Hardi (2016- Atual)
DESENHO DE LUZ: Ronaldo Costa
DRAMATURGIA AUDIOVISUAL: Pedro Fiuza
DIREÇÃO DE ARTE E CENOGRAFIA: Mathieu Duvignaud
FIGURINO: Quitéria Kelly
MÚSICA ORIGINAL: Simona Talma e Luiz Gadelha (2013-2017); Toni Gregório (2017- Atual)
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: Lenilton Teixeira
CONFECÇÃO DE FIGURINO: Kátia Dantas
OPERAÇÃO DE LUZ: Elenco
OPERAÇÃO DE SOM: Elenco
OPERAÇÃO DE CÂMERA: Elenco
DIREÇÃO DE PALCO E CONTRARREGRAGEM: Daniel Torres e Rafael Guedes.
CENOTECNIA: Valdemar Nunes (2013); Anderson Galdino e Daniel Torres (2016); Robson Medeiros (2019)
TÉCNICA DE MONTAGEM: Grupo Carmin
CONSULTORIA DE PESQUISA: Marcio Abreu
DESIGN GRÁFICO: Vítor Bezerra
GRUPO CARMIN (2013): Quitéria Kelly, Henrique Fontes, Pablo Capistrano, Pedro Fiuza e Daniel Torres
*Elenco/equipe de estreia
FINANCIAMENTO / EDITAL: Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2011