PRESENTIFICAR O ENCONTRO INTERESPÉCIE OU O ENVOLVER-SE-COM SÓ PODE SER SUSTENTADO COM OS OUTROS

Por Eduardo Dias
07/10/2024

Meu desejo de escrever este ensaio crítico está em ecoar aspectos do estar-com e do envolver-se-com, a partir da poética partilhada pelo artista Diego Dionísio na exposição “Atravessar Musgo”. A exposição ocorreu entre 16 de maio e 16 junho de 2023, em Natal (RN). O texto foi construído um ano depois, partindo da visitação na abertura da exposição no dia 16 de maio de 2023. Esta escrita se fundamenta em conversas e textos do artista e em leituras complementares.

Proponho, então, pensar a partir do meu percurso no dia sobre: (1) a poética presente e o modo como ela engendrou pensamentos sobre a obra, que se desenvolve como um organismo vivo; (2) o pensar o contexto aliado ao discurso poético, e; (3) as perspectivas de territorialização para além do humano.

 

Termos como estar-com, tornar-se-com, envolver-se-com são utilizados aqui para direcionar a atenção para a particularidade de cada uma dessas relações. Tornar-se-com implica uma concentração na mudança em companhia. Da mesma forma, Estar-com indica uma postura de convívio particular perante a coisa a que se está. Falar de encontro, a meu ver, demanda evidenciar a relação.

 

A exposição foi realizada no Espaço Cultural Candeeiro, que ficava em uma galeria comercial, no primeiro andar, no bairro de Pitimbu, na cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Discreto, para alcançá-lo, foi necessário subir dois vãos de escada, seguir reto, virar à direita e percorrer o corredor até a antepenúltima sala. Embora houvesse outros cômodos, irei me concentrar no espaço expositivo.

O espaço consistia numa pequena sala quadrada com paredes pintadas de azul turquesa. Ao adentrar ali, à esquerda, lambes na parede compreendiam a obra Céu-Mangue (2021). Na parede da frente, oposta à porta de entrada, dois televisores pretos exibiam as videoartes Mãos que devoram (2022) e Terreiro-Quintal-Chão (2023). A obra Atravessar Musgo (2023), por sua vez, ocupava toda a parede da direita. Por fim, na parede da porta, aconteceu a ação performática Traços, Traços, Colheita (2023), realizada no dia de abertura e posteriormente sendo exibida a partir dos vestígios dessa ação. No chão, emaranhavam-se trilhas de areia como raízes e micélios, além de porções de musgos. Esta sequência contemplou meu percurso.

 

Figura 01 - Emaranhados no chão.

Imagem cedida pelo artista (Diego Dionísio).

 

Diego Dionísio propõe, em sua exposição, refletir sobre a coexistência do corpo humano com outros organismos da terra e a aproximação multiespécie. Naturalmente, direciono minha atenção para o estar-com, o tornar-se-com e as práticas coletivas.

Céu-Mangue (2021) surge de uma fotografia retirada de um ensaio visual realizado por Diego e que recebe o mesmo título. A fotografia revela uma paisagem de mangue, na qual a região superior é ocupada por uma porção de terra, enquanto as regiões central e inferior são preenchidas por águas serenas que refletem o céu. A imagem é justaposta repetidas vezes na forma de lambes, alongando a imagem estática numa faixa por todo o comprimento da parede esquerda da sala expositiva. Postos levemente abaixo da altura média do olhar, a linha do horizonte da imagem tendia a se mesclar com a perspectiva do espectador.

O frame de Céu-Mangue me conduziu como o curso sereno das águas da imagem, alongando meu percurso diante daquela paisagem. Pude caminhar enquanto observava a mesma imagem até o fim da parede. A imagem permanecia a mesma apesar do movimento, a perspectiva não mudava. O andar do meu corpo dava ritmo aos meus pensamentos diante da obra: me entretive com o choque temporal entre a cena estagnada e a minha ação, ao passo que cuidava para não tropeçar nos fios de areia e para não esbarrar nas pessoas que dividiam o espaço. Eu me preocupava (e não só eu) em não comprometer a cenografia da exposição ou o fluxo de pessoas.

 

Figura 02 - Exposição “Atravessar Musgo”.

Imagem disponível no perfil de Instagram da Candeeiro.

 

A pequena dimensão da sala, que de início compreendia apenas como evidência das estruturas artísticas limitadas a que temos acesso, deu forma a pensamentos sobre o estar-com. Vivenciar aquela exposição em um espaço pequeno com tantas pessoas ao mesmo tempo aliava-se ao discurso poético do artista sobre o encontro. Visitar noutro dia significaria pensar sem os outros presentes ali e, portanto, sem sentir esse “estalo”. Escrevendo isso, praticamente sinto vontade de dizer que foi uma exposição para ser vista e revista em grupo(s).

Ao fim deste pequeno percurso, Mãos que devoram (2022) estava diante de mim. No contexto desta exposição, a obra pode ser reconhecida como videoarte, exibida em uma televisão, com um fone de ouvido disponibilizado. O vídeo inicia com imagens e sons de feira de rua, e então, muda para cenas em que Diego Dionísio alisa um fruto, um jerimum. Depois, enquadrando sua boca, envolve outro fruto entre os dentes, dessa vez roxo e pequeno, e o acaricia com movimentos circulares com sua língua. Posteriormente, as imagens com o jerimum retornam, mas diferentes. Agora as mãos amassam o jerimum e levam a pasta ao rosto do artista em toques suaves.

 

Figura 03 e 04 - Mãos que devoram. 

  

Imagem retirada no perfil de Instagram da Candeeiro (à esquerda) e imagem retirada da monografia de Diego Dionísio (à direita).

 

No vídeo, o artista executa essa série de ações que priorizam os sentidos do tato, do paladar e até do olfato como formas de perceber o mundo - e o mundo, ali, era o fruto - em contraposição aos sentidos comumente preferidos, como a visão e a audição.

Ao perceber através desses outros sentidos, em especial do tato, abandonamos a postura distante da observação, do pensar demais. O estar-com-um-outro-ali rompe o vício no des-envolvimento, como sinônimo único de progresso, e o substitui pelo envolvimento. Des-envolver/envolver não pode ser pensado aqui como mero trocadilho, mas como uma completa inversão do relacionar. As imagens revelam sensualidade, evidenciam que o erótico é inerente ao mergulho tátil, durante o qual o corpo atravessa e é atravessado. Nesse processo de atravessamentos ultrapassamos limites da nossa postura cristalizada pelo pensamento.

No entanto, sem poder tocar, cheirar, lamber; apenas apto a ver e a ouvir, estava restrito à condição de voyeur. Um voyeurismo possível de partilhar com outros a imagem, mas cujo som era experimentado individualmente, como convite mais íntimo. Esse momento contrastava Céu-Mangue e Mãos Que Devoram. Enquanto a primeira me aproximava das águas que refletiam o céu, a segunda me convidava para o íntimo e em seguida me empurrava para longe, explicitando como aquele sentir háptico tinha sua ausência – mesmo em uma vernissage, quando a experiência expositiva é mais coletivizada – preenchida pela representação.

Na mesma direção, o videoarte Terreiro-Quintal-Chão (2023) se inicia com mãos cavando a terra e com sons de uma pá realizando a mesma ação ao fundo. A seguir, a imagem alterna entre a escavação e pedras cobertas de musgo. Com o tempo, fios de barbante brancos dispostos como micélios vão surgindo da escavação e as mãos interagem com esses novos elementos. Na medida em que a velocidade da alternância acelera, a coloração do vídeo torna-se cada vez mais verde. Ao fundo, pode-se ouvir sons de pedras se chocando, intensificando uma tensão, até que todos esses efeitos cessam. O artista lambe biscoitos triturados que simulam a terra, ao passo que cenas da terra de um quintal são mostradas em alternância. Outros elementos desse ambiente são exibidos, como troncos e teias de aranha. Ao fundo, vozes recitam texto de forma ruidosa. Ao fim, as ações do artista são reexibidas em reverso.

 

Figura 05 e 06 - Terreiro-Quintal-Chão.

   

Prints do vídeo.

 

Terreiro-Quintal-Chão (2023) apresenta seres que integram o quintal do artista. O destaque ali é no caráter multiespécie deste ambiente: seres humanos, não-humanos, vivos, não-vivos, orgânicos, inorgânicos, naturais, artificiais, animais, vegetais, fúngicos, entre outros que constroem, dialogam, atravessam, disputam. Não somente isso, o quintal se apresenta como um entre-lugar, interno-externo, privado-público, meu-nosso. Como afirma Donna Haraway (2021), cada uma dessas denominações marca um discurso que herdamos na carne e suas consequências.

Embora, como dito antes, o destaque esteja direcionado para o contato multi-espécie, o que me fisgou foi a cena em que o artista lambe a terra que, na realidade, é um biscoito triturado. É um detalhe, não que seja difícil de perceber, mas que facilmente nos damos por satisfeitos que “aquilo ali” é terra. E se para a gente é terra, o discurso segue. Mas e quando não é? Esta materialidade indicava uma fragilidade – uma insistência da representação? Se estamos falando do encontro mediado pelo tato e pelo paladar, a presença é inegociável. Bastaria parecer ser?

Não descartemos essas perguntas.

Se as denominações nos impõe consequências herdadas, quando se brinca com elas – é terra ou não é? –, brechas surgem. Aqui, essas brechas não visam desconsiderar a abundância de seres e suas particularidades, mas apresentar uma situação de especulação, de fabulação (Haraway, 2013). Instaura-se uma liberdade parcial e temporária que possibilita “criar, viver, e desejar após ultrapassarmos os limites ontológicos” usuais. A fabulação é encaixada como estratégia de agenciamento do relacionar a partir das categorias ontológicas – seja distorcendo, realocando, destruindo.

Ainda assim, o parecer-ser dessa fabulação é discutível na medida em que ela está diluída. Assim como em Mãos Que Devoram, a capacidade de agência dentro da fabulação demanda presença ciente. Quando, de forma geral, é assumido que “aquilo ali é terra”, a própria possibilidade do público especular se perde e a liberdade parcial e temporária – que aqui chamo de brincar – fica restrita apenas ao artista. Assim como Mãos Que Devoram (2022), parece haver um convite de aproximação, seguido de um afastamento do público. Com esse afastamento, apenas se partilha por vias representativas.

Em Atravessar Musgo (2023) a representação começa a ceder à apresentação; a imagem e/ou o som gravado de algo dá lugar para a materialidade do próprio algo, nesse caso, as plantas. A instalação consiste em mudas de PANCs (plantas alimentícias não-convencionais) plantadas em sacos plásticos preto e envoltas de papel jornal, que continham informações sobre a planta, cuidados e usos em receitas. As sementes dessas mudas foram preparadas em condições propícias para seu germinar e seu crescer durante o tempo em que ficaram expostas. Os “vasos” ficavam dentro de caixotes vazados de madeira e foram fixados em alturas diferentes na parede. À esquerda da instalação, uma folha de papel jornal comprida na parede reunia dizeres e desenhos que relacionavam as plantas, o comer, os desejos e os contextos de afeto.

 

Figura 07 - Atravessar Musgo.

Imagem retirada da monografia de Diego Dionísio.

 

O encontro acontece, o envolvimento e/ou a falta dele está ali sendo vivenciada. As PANCs não são apenas escolhas que simbolizam o enfrentamento à colonização de nossa alimentação, mas são em si o início do enfrentamento – as receitas escritas no papel jornal que envolve cada “vaso”. Elas introduzem uma possível revalorização da terra que as obras anteriores sugerem. Aqui, destaca-se o papel de “um imaginário reconfigurado como pré-requisito para a ação ecológica” (Patrizio, 2023). 

As operações que antecedem e sucedem a obra ampliam Atravessar Musgo. A realização dela só foi possível a partir do aprendizado com as pessoas em uma horta comunitária focada em plantas alimentícias de nossa biodiversidade. Enquanto exposta, o crescer das plantas dependia minimamente das condições disponíveis a elas – havia cuidado contínuo. Diego Dionísio também realizou ações de extensão de plantio e cultivo na cidade para um grupo de pessoas, assim como uma ação performática para distribuir as mudas para pessoas, conhecidas ou não, no bairro onde morava. A partir das extensões de Atravessar Musgo, a obra se funde com a própria realidade social.

Essas operações não só enriquecem a leitura dentro da exposição, mas evidenciam outra particularidade: a obra que continua a crescer, ocupando outros espaços e contextos. Não por acaso falo de ações de extensão, quando poderia me referir a ações paralelas. Não falo de obras que geram novas obras e direções para o artista, mas da obra que se reconfigura como organismo vivo em si

Diego Dionísio me parece ser guiado pelas demandas desse crescimento próprio, mais do que guia, encaminhando o repensar de ecologias ao tornar todo espaço potencialmente artístico por meio da presentificação do encontro interespécie em cada um desses momentos.

 

Figura 08 - Traços, Traços, Colheitas

   

Registros do autor.

 

É a presentificação de uma práxis e não apenas do discurso que Traços, Traços, Colheita (2022) encontra força. Nesta reperformance são reunidos materiais como tintas vegetais feitas na hora, tigelas de barro, carvão vegetal e tecido de algodão cru para construir uma cartografia do afeto. A ação ocorre diante de uma paisagem sonora, resultante da justaposição e da sobreposição de gravações dos espaços cotidianos do artista. Em um dado momento, surgia uma abertura para que a participação do público pudesse compor com a obra. Ao fim, a prática imaginativa deu forma a um mapa de cores, linhas, fronteiras, amassados, borrões, lembranças, motivações e valores; como se demarcasse territórios que ocupamos ou desejamos ocupar.

Assim como em Atravessar Musgo, a participação de humanos, não-humanos, vivos, não-vivos, orgânicos, inorgânicos, naturais, artificiais, animais, vegetais, fúngicos, etc. deixa de ser apenas representativa, e estes seres passam a se apresentar para culminar na obra. As plantas que deram cor à tinta, o barro que sob mãos humanas se tornou tigela, o algodão que estruturou o suporte, o artista que propôs, o público que visitava e celebrava a exposição cartografou a partir daquele momento. A obra residual (que desgosto de chamar assim) também se difere das outras, pois indicia a ação ocorrida não pelo registro, mas pela própria materialidade ainda presente. Este vestígio físico faz parte da natureza dos encontros e das historicidades que atravessam as relações de qualquer ser que está no mundo.

É curioso pensar como a expografia aproxima as obras representativas nas “primeiras” paredes e os trabalhos mais apresentativos nas paredes “finais”, de modo que este primeiro grupo sempre se contrapunha ao segundo grupo: Céu-Mangue é contraposta a Atravessar Musgo; Mãos que Devoram e Terreiro-Quintal-Chão se contrapõem a Traços, Traços, Colheita.

Sobre meu percurso, noto que a partilha não pareceu suficiente para uma poética da compreensão (Patrizio, 2023), embora instigasse o desejo por outras ordens sociais. A exposição “Atravessar Musgo” (2023), de Diego Dionísio, dá um passo em direção a esta poética que busca superar a preocupação humana exclusiva, aspecto que pouco vejo no contexto artístico de Natal (RN). Quando digo isso, não falo sobre a inexistência de paralelos entre o humano e o não-humano, e sim sobre a abordagem de relações multi-espécies não recorrendo apenas a denominações fincadas.

A vontade deve crescer para uma ação sobre os problemas ambientais e ecológicos, considerando desejos, motivações e valores humanos (Neimanies, Asberg e Hedren in Patrizio, 2023) e além-do-humano. As cartografias, as visualidades táteis e as fabulações encaminham o encontro interespécie para um territorializar que só pode ser construído e sustentado com os outros, no plural.

 

Notas do Autor:

- Atualmente o espaço físico do Espaço Cultural Candeeiro não existe mais, pois os idealizadores não moram mais no estado do Rio Grande do Norte. O projeto continua atuante, podendo ser acompanhado no perfil nas redes sociais: https://www.instagram.com/candeeiro.gc/

- A obra "Mãos que Devoram", quando desenvolvida em 2022, foi apresentada como videoinstalação.

- A performance "Traços, Traços, Colheitas" foi realizada, pela primeira vez, em 2022; sendo posteriormente reperformada na exposição “Atravessar Musgo”. Segundo o artista, ainda há a pretensão de realizar mais ações desta proposição em outros locais.


 

Referências

Da Silva, D. D. S. (2023). Somos Húmus. 112 f. TCC (Graduação) - Curso de Artes Visuais, Departamento de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

Haraway, D. (2021). O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Bazar do Tempo, Rio de Janeiro.

Haraway, D. Kenney, M. (2017). Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene: Donna Haraway in conversation with Martha Kenney. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4374766/mod_resource/content/0/HARAWAY_interview_Anthropocene_capitalocene_chthulhucene.pdf

Patrizio, A. (2023). O olhar ecológico: a construção de uma história da arte ecocrítica. Editora da Unicamp, Campinas.

 

 

 

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