UMA CLIVAGEM EM FENDAS

Por Felipe Rocha
08/10/2024

Fendas (2019), filme dirigido por Carlos Segundo, é um dos poucos longas-metragens filmados e ambientados na cidade de Natal. Iniciado como uma produção potiguar independente, posteriormente, o filme tornou-se uma co-produção com a França. A trama acompanha Catarina, uma pesquisadora da Física que se muda para a cidade a fim de lecionar na UFRN. Sua pesquisa parte de uma investigação sobre a luz, capturando-a com o auxílio de uma câmera por um processo de aproximação (que no filme é chamado de mergulho). Catarina é capaz de desvendar sons ocultos que obedecem a uma lógica própria. Em sua pesquisa, ela visita pontos conhecidos da cidade de Natal como o Forte dos Reis Magos, o Farol de Mãe Luiza e o Parque da Cidade. No início da trama, seu gato está desaparecido.

O longa se desenrola no cenário desértico de uma universidade em greve, onde a protagonista desenvolve diálogos com poucos personagens: com seu aluno Henrique na disciplina intitulada “Física da Poiesis”, com sua colega de departamento, com um guia de museu que nos fala da ocupação americana na Segunda Guerra e, ao final do filme, com um correspondente de Cabo Verde e seu ex-marido Renée. Ainda, em dois momentos, Catarina se depara com a visão elusiva de uma jovem que examina plantas com curiosidade. O sentido dessa visão é polissêmico, e só nos é revelado ao final as interpretações possíveis para a presença dessa garota que, até onde sabemos, pode ser tanto real como imaginária.

Fendas é uma ficção científica, ainda que não pareça remeter aos marcos tradicionais do gênero. O debate mais importante do século XX,  na física quântica - a polêmica entre Heisenberg, Bohr e Einstein - é mobilizado de diversas maneiras. Primeiro, serve para tratar de reflexões próprias do cinema; e o dilema do cinema espelha, então, o dilema das partículas subatômicas: se Heisenberg constatou que a mera observação dos fótons alterava sua trajetória, tornando suas medidas no espaço-tempo indetermináveis, também uma série de cineastas e críticos se questionaram sobre o poder de intervenção do cinema - uma arte que, talvez mais que qualquer outra, afirmava a límpida identidade da representação. Heisenberg e, depois, Bohr, como seu legatário, questionaram a ideia de uma ciência como mera descrição da realidade; ciência que parte do princípio da identidade do fenômeno, isto é, da igualdade do objeto consigo mesmo. Similarmente, Carlos Segundo propõe-se a questionar o estatuto de identidade da imagem cinematográfica, aludindo a uma dimensão subterrânea do visível: o som. Esse questionamento é posto em jogo, no filme, através de uma série de dispositivos. Temos os diálogos que, muitas vezes, se referem ao debate supracitado verbalmente; as imagens hiper aproximadas de Catarina, em pixelização abstrata, acompanham um desenho de som fantasmagórico, justapostas às imagens “objetivas”; e a trama em si, que coloca, de forma sutil, o problema da indeterminabilidade. 

É no desenrolar da trama que a noção de indeterminabilidade torna-se questão existencial, dada a posição contemplativa de Catarina em virtude de seu ofício e solidão numa cidade estranha. O filme parece se construir em torno de episódios que só se revelam enquanto trama propriamente dita (enquanto um encadeamento de causa e efeito) para olhos atentos, mais ao final do filme. Num dado momento, no Forte dos Reis Magos, Catarina captura imagens do mar ao mesmo tempo em que é assombrada, novamente, pela imagem da jovem curiosa. Essa mesma garota havia aparecido apenas uma outra vez, do lado de fora da sala de aula enquanto escutava a leitura do seu aluno Henrique. Mais tarde, na mesma noite, no processo de decomposição da imagem, Catarina descobre, pela primeira vez, sons ominosos mais semelhantes a gritos e cenas de violência. Ela se deita na cama, perturbada, enquanto uma tempestade ocorre do lado de fora. Dado o contexto, minha primeira associação com relação aos gritos foi ao passado colonial e imperialista que é posto em jogo tanto com o Forte como com uma diálogo sobre a ocupação estadunidense durante a Segunda Guerra. Mais tarde, descobrimos que seu aluno, Henrique, desaparecera numa tempestade. Os gritos são recontextualizados, e para além de ecoarem o passado, parecem também ser um presságio do futuro. Somente ao final do filme, nos damos conta de que um dos interesses de Catarina na pesquisa advém de uma perda. Ela busca, por meio dos sons extraídos da imagem, o fantasma de sua filha. Seria a imagem da garota, portanto, uma alusão à juventude perdida de Catarina ou ao futuro não realizado de sua filha?

Desse modo, o filme percorre diversas linhas de ações possíveis a partir desse conceito fundamental - o que gera, sem dúvidas, linhas que não me parecem tão bem elaboradas e desenvolvidas como outras. Destaco que, mesmo com uma concepção tão carregada e pesada, o cineasta não deixa de encontrar momentos lúdicos diante de tamanha angústia. Temos a alusão jocosa à Heisenberg no quadro da sala de Catarina, defendendo Adirley Queirós contra Neymar, bem como o encontro via gritos e e-mails com o senegalês. Das linhas que me parecem menos desenvolvidas, destaco certas problemáticas políticas que percorrem a obra em alguns de seus momentos. De um lado, parece uma questão inescapável dada a abrangência da noção fundante do filme; de outro, parece ser fruto das condições de sua produção. 

Quero dizer que, a ciência e o cinema concebidos como intervenção suscitam uma dimensão eminentemente política, pois questionam tanto a ideia de uma contemplação dissociada de uma intervenção, como suscitam questões acerca da possibilidade de ação num mundo objetivo onde a verdade expressa a desigualdade do objeto. O evento com o desaparecimento põe em questão a própria ideia de livre-arbítrio, aludindo à ideia oposta de destino. Quando falo nas condições de produção, falo num duplo sentido, também. (1) A ambientação do filme numa greve parece ser a condição necessária para gravações que só poderiam se dar com a universidade vazia. (2) O discurso pretensamente feminista da obra parece advir de um certo lugar comum discursivo, um checklist indispensável dado os objetos do filme inseridos no nosso atual contexto histórico. Se o filme aborda temas complexos e mesmo políticos de uma forma que me parece fazer jus ao seu objeto (como é o caso do passado colonial e imperialista), nesse caso seu resultado me parece demasiadamente e curiosamente simplista. Lembremos que o filme foi realizado no contexto da ascensão do bolsonarismo e da extrema-direita, pós-golpe. É nesse contexto que a greve só aparece (1) no olhar confuso de Catarina para um lambe que anuncia a ação política e (2) no questionamento de um aluno diligente. 

Quanto à outra questão, de fato, o filme encerra com uma dedicatória às pesquisadoras brasileiras, bem como sua trama é resolvida pela afirmação contundente de Catarina do seu livre-arbítrio, contra seu ex-marido manipulador. Em ambos os casos, o que me parece, é que a personagem de Catarina, na sua atitude contemplativa, jamais é posta em causa. E, de modo mais debatível, a “vitória” de Catarina contra seu marido parece se inscrever na linha de alguns filmes brasileiros que buscaram resolver esteticamente (produzindo uma certa “catarse”) o problema mais profundo no qual nos encontrávamos e ainda nos encontramos.

Seria um salto inferencial muito grande tentar encontrar as causas para os efeitos descritos acima. Minha primeira intuição compreendeu esse problema a partir do meu conhecimento pessoal da biografia de Carlos Segundo, com quem tive contato enquanto aluno do curso de Audiovisual na UFRN. Não sendo natural de Natal, o cineasta também veio à cidade como professor no curso de Audiovisual. Tanto Fendas como Sideral (2021), que se ambientam na capital potiguar, não podiam deixar de se relacionar com a história e geografia dessa localidade enquanto obras filmadas por alguém de fora, relações que o filme parece traduzir de forma arguta. Desse modo, o longa se organiza segundo esse duplo: a trajetória biográfica do autor com a cidade, bem como sua trajetória biográfica com o cinema, a arte e a ciência. 

Aquilo que escapa a esse jogo, no fundo, acaba aparecendo como um non-sequitur, ou como uma simplificação. No entanto, é mister destacar que o roteiro também é assinado por Michelle Ferret, o que torna mais complicada a tarefa de relacionar a biografia do autor com a obra a partir de um contato apenas pessoal. Isso não exclui o fato de que os temas políticos supracitados sempre aparecem como: (1) externos à trama e (2) externos ao princípio que organiza as imagens

A fala final de Catarina parece uma resolução apressada para um conflito que é apenas introduzido no último momento do filme. Mesmo que, retroativamente, esse momento seja como uma chave explicativa para suas ações desde o princípio, ele nos aparece de surpresa e destoante do que parecia estar sendo construído até então. Parece que isso ocorre porque o tema não é posto em jogo de nenhuma outra forma a não ser por meio do texto falado. Me salta aos olhos a cena em que Catarina conversa com sua colega de departamento: revela-se aqui o flagrante didatismo com que os autores parecem querer expressar suas visões políticas, no limite dos personagens tornarem-se seus porta-vozes. Essa abordagem pode enfraquecer o tema justamente porque ele nunca penetra no princípio que organiza as imagens. O tema do imperialismo e do colonialismo, ainda que seja abordado de forma au passant, resguarda sua força justamente por estar intimamente relacionado com a trama (pois trata-se do contato de Catarina com a cidade enquanto estrangeira) e com a imagem (não só vemos esses lugares e artefatos, como tornam-se objeto do procedimento de decomposição imagética).

De um lado, temos a investigação científica, cinematográfica e biográfica de Catarina, organizada segundo justaposições imagéticas. Aqui aparece o tempo, a memória, o futuro e todos esses “universais”. Do outro, temos os temas políticos da dominação patriarcal e da ascensão do neoliberalismo - o particular - sempre relegado ao texto. Não podemos deixar de dizer que o diálogo também aparece na hora de abordar o tempo, o livre-arbítrio, mas sempre como complemento. Essa clivagem que a obra apresenta no seu cerne soa desnecessária ou mesmo não intencional, como uma dificuldade de encadeamento que faz com que a resolução da trama pareça uma saída fácil que não responde nenhuma das questões postas em jogo ali (e que de fato, me parecem sem resposta).

Fendas, enquanto um título abstrato e sucinto, entrega-se a uma multiplicidade de sentidos a partir da nossa interpretação da obra: as fendas deixadas na carne e na memória pelo tempo, as fendas de som encontradas na imagem decomposta, as fendas no discurso da pretensa identidade do fenômeno, etc. Um último sentido que poderíamos atribuir diz respeito a essa fenda entre a tematização política e a construção narrativa e imagética. Ainda que tenhamos abordado essa fenda enquanto problema no texto, o longa não deixa de figurar um capítulo interessante no cinema nacional e potiguar. Se historicamente, tanto nacional como mundialmente, construiu-se uma cisão entre o cinema dito narrativo e o cinema experimental, o filme parece querer superar essa separação. Fendas torna a experimentação e a decomposição da imagem o foco mesmo de uma trama que, ainda que subvertida, mostra seus toques clássicos.

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