Por Geovana Grunauer
08/10/2024
Conheci Carolina Teixeira em uma partilha de portfólios artísticos que se deu na sala D do Anexo do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2019. Eu era bolsista da ação de extensão “Diálogos”, projeto idealizado pela professora Regina Johas. Pode-se dizer que essa primeira aproximação com seu fazer artístico fez germinar uma semente reflexiva cujos frutos irei me atrever a colher a partir desse mergulho crítico que aqui proponho, no tocante às três foto-performances expostas na exposição “Poética Protética”, sob curadoria de Sânzia Pinheiro, iniciada em março de 2020 e que devido à pandemia do covid-19 foi adiada e retomada em novembro do ano seguinte.
Figura 01 - Exposição “Poética Profética”, na Galeria do NAC - UFRN, em Natal (RN).
Foto: Arquivo pessoal da autora.
No período de novembro a dezembro de 2021, a galeria do NAC – Núcleo de Arte e Cultura da UFRN foi ocupada com produções da artista que datam desde 2012, na busca por refletir sobre as implicações de um corpo que existe nas margens do que foi concebido enquanto padrão socialmente aceito. Por entre diferentes linguagens e suportes, a artista materializa nas obras aqui trazidas, o esforço de uma vida cuja legitimação ainda se encontra em processo – ou melhor, em guerra. Com base em registros próprios, acessei memórias espaciais da montagem da exposição que me permitiram pensar sobre algumas questões. As três fotografias expostas em sequência capturam a artista no ato performático em diferentes ambientes urbanos, e até em cidades distintas.
De imediato identificam-se as órteses acorrentadas enquanto um elemento conectivo que interliga as três fotoperformances, atuando como dispositivos externos. De acordo com Rezende (2006), a “órtese tem um significado mais restrito e refere-se unicamente aos aparelhos ou dispositivos ortopédicos de uso externo, destinados a alinhar, prevenir ou corrigir deformidades, ou melhorar a função das partes móveis do corpo”. No mesmo texto que me colocou frente a esse significado mais técnico, também me deparei com a etimologia dessa palavra: “órtese é oriunda da palavra grega orthósis, formada, por sua vez, de orthós, reto, direito, e o sufixo –sis. Este sufixo grego expressa ação, estado ou qualidade. Orthósis, no caso, é a ação de endireitar, de tornar reto, retificar” (Rezende, 2006).
Figura 02
Foto: Marcelo Santana.
Essas duas definições roubaram minha atenção por um tempo. Ambas parecem entrar em confronto com a forma pela qual a artista reúne essas peças na série, justamente pelas órteses apresentarem aqui uma finalidade deslocada de seu significado anteriormente exposto, visto que atuam na presença de um corpo, e não mais sobre um corpo. Diante disso, essa escolha reflete um gesto performativo de subversão de sentido no instante em que esses objetos se mostram configurados em um âmbito externo ao que foi designado no princípio para elas. É sobretudo, um reforço corpóreo e imagético de situá-los à margem do próprio corpo que não necessita ser “corrigido” ou “endireitado”.
Ao observar outros trabalhos e pesquisas da artista e produções de terceiros, a exemplo do curta-metragem Carolina dirigido por Lilih Curi, lançado em 2017 e também exibido na exposição, nota-se que a conexão entre o campo da deficiência e a produção artística provém de um lugar de fala de quem é perpassada cotidianamente pela experiência de habitar um corpo deficiente, cuja criação é a própria defesa por um olhar estético para além do que hegemonicamente já se mostra bem estabelecido. Nesse sentido, comecei a pensar sobre como as aproximações entre a realidade cotidiana que atravessa a artista e a expressão desses recortes particulares na própria obra é um traço próprio do fazer artístico contemporâneo, bastante esmiuçado desde a época de grande efervescência artística e de movimentos de contracultura instaurados na segunda metade do século XX, contexto de surgimento da body art e do que, posteriormente, consolidou-se como performance. Dito isso, observar a presença do entrelaçamento entre arte e vida na obra de Carolina Teixeira me fez lembrar de alguns trabalhos de mulheres artistas das décadas de 1960 e 1970, a exemplo da série Siluetas da cubana Ana Mendieta, uma das pioneiras da body art e da estadunidense Francesca Woodman e seus autorretratos em preto e branco, ora despido, ora reorganizado por entre elementos diversos.
Quando analisadas conjuntamente, a série Siluetas de Mendieta e as fotografias de Woodman lançam luz para aspectos de similaridade simbólica repousados entre si como também na série exposta em Poética Protética por Teixeira. A exposição de corpo tomado por formas encolhidas, retraídas, parcialmente ocultas na penumbra, falam mais sobre questões referentes à identidade e/ou ausência dela, demarcação de território e busca de pertencimento.
Sendo assim, o corpo é entendido enquanto veículo de vazão no processo investigativo dos aspectos subjetivos e identitários que atravessavam as expressões dessas artistas. Entretanto, esse constante movimento de borrar as fronteiras entre arte e vida no trabalho de Teixeira apresenta uma particularidade nas questões de pertencimento e territorialidade, por se tratar do lugar que um corpo deficiente ocupa no mundo, com modos de subjetivação próprios que não podem ser equiparados a outros modos hegemônicos com os quais estamos habituados e inconscientemente inseridos no sistema capitalista, que molda e influencia as dinâmicas sociais nele circunscritas, a exemplo do próprio ofício de fazer arte. Sobre isso, é premente ressaltar que:
(...) A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro – em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Aceitamos tudo isso porque partimos do pressuposto de que esta é a ordem do mundo, ordem que não pode ser tocada sem que se comprometa a própria ideia de vida social organizada.
(Guattari, Rolnik, 1996, p.42)
Diante desse pensamento, é notória a existência de um outro valor imputado aos corpos não-normativos que fogem da lógica capitalista, em que a tendência é à exclusão daquilo que é incompatível com esta ordem de mundo. Tudo o que pode comprometer essa estrutura, obstinada a padronizar existências em prol da manutenção da engrenagem produtiva capitalista é colocado em um lugar de lacuna, incompletude e ineficiência. Daí a raiz fundante do recorrente questionamento acerca de uma suposta capacidade e/ou incapacidade que corpos deficientes apresentam, quando na realidade o que deveria estar em jogo é a maneira como um corpo deficiente produz fissuras nessas dinâmicas relacionais segregadoras, ao propor uma outra lógica de estar no mundo. Nas palavras da própria artista:
A deficiência transcendeu o lugar da justificação corporal normativa que nos diz; o que um corpo pode? Assim, a meu ver criaram-se espaços de ressignificação corporal a partir do entendimento do que um corpo não pode e, desta forma, emergir outros espaços onde o não-poder é o ponto de partida para um projeto político-artístico que envolve a experiência da/com/na deficiência por livre e legítima escolha do artista.
(Teixeira , 2021, p.150)
Nesse sentido, levar órteses e próteses à luz do dia no ano de 2012 para uma das praças de suma relevância histórica e cultural de Salvador, como é o caso da praça do Campo Grande, sela um pacto de afirmação entre a artista, a obra e o entorno – público e sociedade – nesse processo de ressignificação corporal. Essa ação também delimita um território próprio de atuação na história da arte que, assim como os demais projetos de civilização e construções sociais, relegaram por muito tempo um espaço de expressão a esses corpos. Então, ter caminhado pelas calçadas daquela praça constituiu um ato simbólico de expansão dos espaços geográficos de atuação, cuja premissa repousa em existir para além dos fardos que já carregou – e deixa implícito se ainda há de carregá-los.
Apesar da obra partir de uma experiência subjetiva da artista, ela não se inclina para um caráter autobiográfico, uma vez que se propõe a dialogar com outros sujeitos que partilham de experiências similares, estabelecendo uma conexão com um coletivo indiretamente exposto.
Vale salientar que essa noção de coletividade acionada nas fotoperformances de Teixeira ocorre de maneira velada. A presença das seis próteses arrastadas pelo chão evoca a memória de seu uso por uma categoria específica que aqui se revela oculta, sendo então a presença do coletivo um rastro de memória refletida nesses dispositivos agrupados e carregados pela artista. Essa percepção aponta para um caráter dúbio de intencionalidade do gesto artístico: ao passo que carregar as órteses à parte do corpo implica recusa de uma existência que pressupõe ser corrigida ou consertada, as seis órteses reunidas despertam a atenção para a ausência desses corpos, o que abre brecha para se refletir sobre um processo de invisibilização desses sujeitos. Ademais, abre brechas também para questionar as razões que sustentam a marginalização desses corpos e quais instâncias se beneficiam com a perpetuação dessas construções, sendo o próprio tecido social parte integrante desses contornos políticos.
Figura 03
Foto de Marcelo Santanna.
Retornando à qualidade coletiva da série, pode-se afirmar que tal aspecto posiciona a obra em uma esfera micropolítica do sensível no instante em que as performances reagem frente aos arranjos de subjetividade já consolidados pelo sistema, subvertendo-os quando expõem uma realidade de acorrentamento-aprisionamento que urge por emancipação, já que na concepção de Guattari, Rolnik (1996, p.133) a grande questão é a maneira como iremos de fato reproduzir - ou não reproduzir - os modos de subjetividade dominantes.
O corpo da artista performa para além de um pensamento de resistência frente às lacunas históricas, artísticas e epistêmicas; ele efetiva um processo de reapropriação da subjetividade, pois cria seu modo próprio de referência, bem como sua própria cartografia, inventando uma práxis particular capaz de romper fissuras no sistema dominante (Guattari, Rolnik, 1996). A execução dessas performances dá a ver o que por muito tempo fora ocultado e que agora somos convocados a tomar partido.
Referências
De Rezende, J. M. (2006). Prótese, próstese, órtese. Revista de Patologia Tropical / Journal of Tropical Pathology, Goiânia, v. 35, n. 1, p. 71-72, 2006.
Guattari, F. Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.
Teixeira, C. (2021). Deficiência em cena: a ciência excluída e outras estéticas. Natal: Offset editora.