TEMPO E DELÍRIO NAS NUVENS DE JUAN JOSÉ SAER

Por Silvia Passos
08/10/2024

                                

 

Há uma brincadeira estendida coletivamente na qual tentamos adivinhar no formato das nuvens algum tipo de símbolo ou figura que ela poderia representar. Essa experiência, aparentemente infantil, é só um exemplo da nossa dificuldade de conviver com a realidade sem sermos importunados pela necessidade de atribuir significados para todas as coisas. Por outro lado, também podemos pensar em um indicativo da nossa capacidade de forjar outro mundo a partir da sua imagem. A variabilidade da paisagem provoca uma angústia muito interessante acerca do seu mistério, na Bucólica IV de Virgílio, por exemplo, as Parcas decidem sobre o destino, trazendo o prenúncio da idade de ouro, bastando, para isso, apenas observar ''o universo oscilante em sua massa convexa, as terras, as extensões do mar e o céu profundo''. (Virgílio, 2003). 

Em uma das minhas visitas ao Centro de Convivência e Cultura de Natal (CECCO), um dispositivo público da Rede de Atenção Psicossocial, escutei de um conviva seu interesse por essa brincadeira. Falava das plumas de ar, das suas ciências, suas origens e suas incógnitas. Dizia que, um dia, se conseguisse construir um lugar para divulgar seu trabalho, esse lugar se chamaria "Nuvem". Por algum motivo e por algum tempo, esse lugar ganhou vida em minhas fantasias até que resolvi compartilhar esse relato com um amigo. Ele disse que eu precisava conhecer As Nuvens, romance do escritor argentino Juan José Saer. 

Publicado originalmente em 1997, em Buenos Aires, e traduzido no Brasil em 2008 por Heloísa Jahn para a Companhia das Letras, As Nuvens não é um romance psicológico, nem documental, tampouco de aventura, mas, ao seu modo particular, abrange características contidas em todas essas classificações. Saer não era muito afeito a esses termos para denominar um romance, e por causa dessa lacuna a crítica acaba elegendo para a obra o estatuto de “antiepopeia”. Um termo de combate que parece contemplar o objetivo crítico da sua obra, embora o livro não se encerre nesta definição. Acrescentaria que, talvez, o intuito Saeriano não seja o de defender uma anti-literatura, mas o de acusar a impossibilidade de imputar uma nomenclatura que dê conta da ficção (ou de mostrar que a ficção não necessita sempre de gêneros para existir). 

Ao iniciar o livro, somos apresentados a uma epígrafe, retirada do ato VI, de A Celestina, de Fernando Rojas: “Abre espaço para teu desejo” (Rojas, 1502). Curioso perceber que o autor rememora justo essa obra, do século XV, de gênero híbrido (Um drama? Uma comédia? Uma peça? Um romance?) e situada em um período de transição entre o final da literatura medieval e o início de um novo ciclo da literatura espanhola que inaugurou características estilísticas e até temáticas que apareceriam depois em Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes (1605). Me soa como um convite ao leitor, para que se deixe estar aberto, que deixe seu desejo correr solto pelas linhas do texto. Um evento de abertura para a transitoriedade, que nos faz abandonar concepções pré-estabelecidas sobre o que é narração. Sendo assim, a obra, não alcançando formato nenhum, contorna a formação dessa nublagem que denuncia a pulverização das categorias de romance.

Iniciando o texto, nos deparamos com Pichón, professor universitário em Paris, que recebe de um amigo, Tomatis, uma carta com um disquete contendo apenas um manuscrito arquivado. O manuscrito é nada mais do que a própria história d’As Nuvens. Esse texto preambular não é um comentário sobre a obra, mas já faz parte dela. Em outras palavras, iremos fazer a leitura de um manuscrito datado de 1804, juntamente com um personagem fictício. Tomatis, o amigo do professor, acredita que o texto não é verídico, ao que Pichón indaga: 

 

Pensando bem, estamos muito interessados em sua opinião porque, contrariamente ao que penso, Tomatis afirma que não se trata de um documento autêntico, mas de um texto de ficção. Mas eu digo: pensando bem, o que mais são os Anais, a Memória sobre o calor, de Lavoisier, o Código Napoleão, as multidões, as cidades, os sóis, o universo? (Saer, 2008) 

 

As palavras do personagem me lembraram as palavras do Saer em seus textos críticos: ''A verdade não é necessariamente o contrário da ficção, e quando optamos pela prática da ficção não o fazemos com o propósito turvo de tergiversar a verdade” (Saer, 2022). O autor, então, não cria apenas uma história, mas explicita como essa história foi encontrada, fato que, na minha experiência de leitura, tensiona os limites do contrato ficcional. Tensão que coloca o texto em dúvida, já que há, em meio às camadas, todo o lance dos amigos debaterem se aquilo é legítimo. Me perguntei se havia algum elemento verdadeiro remodelado na ficção: que pedaços dessa história poderiam ser considerados verídicos? Uma história dentro de uma história? Cheguei até a comparar o personagem do professor Pichón com o próprio Saer que tornou-se professor de Literatura na França, após exilar-se neste país durante o período ditatorial da Argentina. Estas questões iniciais ainda muito elementares foram efeitos causados pelo meu primeiro contato com a obra, e só depois de algumas releituras consegui encontrar neste incômodo alguma filosofia.

Acessando o manuscrito dentro do disquete, também começamos a história que nos acompanhará até o fim do livro — sem retornamos ao plano narrativo dos professores Pichón e Tomatis, somos apresentados ao doutor Real, um psiquiatra que trabalha no sítio das Três Acácias, próxima de Buenos Aires, com o doutor Weiss, seu amigo e mentor, cujas teorias muito próprias sobre a loucura e como tratá-la são aplicadas na Casa de Saúde de que é fundador. Em dada altura é confiada ao doutor Real a missão de se deslocar a Santa Fé para trazer cinco enfermos até à Casa de Saúde. Essa missão se torna uma longa viagem de travessia do pampa, no qual o doutor Real fica responsável por conduzir uma caravana formada por loucos, indígenas, soldados e prostitutas. 

O que acontece é que a construção das Três Acácias – uma instituição com metodologia e arquitetura muito mais semelhante a um retiro filosófico do que a um manicômio – situa-se em um período de modificações políticas na Argentina, provocando polêmica na opinião pública da corte e da igreja. O que chama atenção neste ponto, é que relatando os impactos desses acontecimentos, topamos com o final da história nas primeiras páginas. Real, após algumas breves linhas, começa a narrar os fatos que levaram à derrocada das Três Acácias. A Casa foi invadida, vandalizada, os enfermos dispersados nas redondezas e considerados desaparecidos. Isso pode parecer estranho, mas serve muito para construir a paisagem política local, além de dar profundidade ao personagem do Weiss que, ainda que seja um psiquiatra renomado, tem um fraco por lupanares e mulheres casadas. Na medida em que nos é apresentado o desenlace desses episódios, a obra nos infiltra sentimentos de indignação embaralhados de comicidade. Por um lado, pelo conservadorismo das autoridades e, por outro, pelo que acontece entre o médico e um cônsul inglês. Um embaraço, um acontecimento pessoal tocando numa decisão pública, fato que pode transmitir dubiedade na justificativa para a invasão da Casa. A importância deste ''final'' vai se dissolvendo no relato, pois o interesse principal do nosso narrador é descrever sua aventura na caravana, que se passa trinta anos antes deste cafife. Essa dissolução também provoca observações em suspenso: Ele já entregou o desfecho da história? O que acontece de tão impactante na viagem que supera essa tragédia? O que acontece no espaço entre o início e o fim que pode ser mais importante que a derrocada da Casa de Saúde?

De novo, a obra não nos é narrada em ordem cronológica, parece sempre jogar com esses deslocamentos, mas faz isso sutilmente de modo que esquecemos das nossas direções viciadas de “início, meio e fim” e recordamos aquele velho verso de Gita, do Raul Seixas, “o início, o fim e o meio”. No entanto, me parece que a intenção da obra é ainda mais maluca. A questão é que não existe sequer começo, nem meio, nem final e, que, com isso, a história vai testando maneiras de desacomodar o leitor. 

Assim também é o discurso delirante: não precisamos conhecer muito de psicologia para saber que ele desconhece sequência programática. O delírio é um eco codificado do que já existe na cidade, na família, nas instituições, e estará contido no dia a dia destes personagens como um ato de linguagem muito mais próximo da verdade. Desta maneira, poupados da excitação causada pela curiosidade de saber o fim da história, passamos a nos concentrar no que realmente importa: o próprio trajeto. E a operação escolhida para que esse trajeto nos seja apresentado é a descrição.

O esqueleto da narrativa reside na transcrição da viagem. O que o doutor Real faz é um trabalho que me lembra o relatório etnográfico. A descrição, sem dúvidas, se faz presente nas obras de Saer, e isso não diz somente sobre um vício voyeurístico característico de muitos escritores, nem só por mera exposição floreada da realidade. Ao mesmo tempo que também não se trata de uma descrição direta e crua dos objetos. A natureza é registrada de modo que o ambiente aparece equiparado à vida interior, o espaço oferece uma continuidade do próprio ser. Apesar disso, não estabelece uma ponte alegórica entre sujeito e mundo, não usa muitos arranjos metafóricos, não foi preciso recorrer ao fantástico para se deparar com o fantasmagórico que surge na descrição das ocorrências. O narrador da expedição busca apresentar os fatos por meio mais nítido possível, num estilo claro, sem arrodeios. 

As observações com finalidade de estudo aparecem em anotações postas em parênteses e sofrem interferências de experiências pessoais, admirações e vicissitudes. A título de exemplo, uma das memórias mais ricas da viagem está fundida com os poemas de Virgílio: ''Mais de uma vez vi-me atravessando a planície como Eneias'', afirma Real. As sensações ásperas que se cravam no corpo de alguém que percorre os pampas interpenetram-se com a música delicada que surge dos versos e se confundem num sabor único que pertence exclusivamente ao próprio personagem. Assim, os dados empíricos coexistem com os dados líricos, fazendo nascer uma poética a partir do vocabulário médico, que por sua vez, nos era conhecido antes como formulaico e chato. Nas confissões do narrador: '

 

(...) Essas descrições fiéis, cuja ausência num tratado científico seria razão para críticas à minha pessoa, podem parecer ofensivas numa memória em que também intervêm experiências pessoais, mas nessa fidelidade ao verdadeiro, indiferente aos preconceitos e à reprovação da maioria, não faço mais que seguir o exemplo do doutor Weiss, que em todos os momentos fez dessa fidelidade um princípio de ciência e de vida. (Saer, 2008)

 

O nome do próprio me?dico — Real — na?o parece ser por acaso, diz muito sobre o projeto Saeriano de chasquear o realismo através de uma narrativa embriagada de normas objetivas. Por isso, sinto que a escolha da modalidade descritiva é, primeiro, para envenenar a própria ideia de descrição, questionando a sua precisão, no momento em que nos propomos a atividade de escrever memórias do passado. Segundo, – desprendidos da necessidade de veracidade e já acostumados com o saber que surge do delírio – para reduzir e/ou ampliar os dados de ambientação e reinventar o formato das coisas. E, finalmente, para dizer que mesmo descrevendo a realidade exatamente como ela é, não escapamos das garras da ficção. 

Assim, a descrição, depois de ler As Nuvens, me chegou menos como um recurso narrativo e mais como um posicionamento perante o tempo. Trabalhar com descrição é expor as fendas da memória, e tal como ela, a história vai saltando entre os acontecimentos do passado, do presente e do futuro, nunca em ordem sequencial. 

O que suplanta a desorientação provocada pelos mistérios do tempo é a escolha ficcional que fazemos para a vida, dentre todas as opções que a verdade nos oferece. O registro não dá conta do fato, é um terreno poroso onde se infiltram turbulências de sentido. O que resta para nós, e para nosso narrador, é fazer uma aposta nas palavras, mesmo sabendo que ela não encapa a realidade, mesmo sabendo que ela delira, que ela não alcança o interior de uma paisagem, de um cavalo, de um indígena conversando com o que convencionamos a chamar de louco. Apostamos nas palavras do passado e do futuro pois somos seres de linguagem impotentes diante do destino, como na Bucólica IV é preciso confiar que as Parcas digam sim. 


 

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